Diários de Adão e Eva e Outras Sátiras Bíblicas - Mark Twain
Antirreligioso convicto, o autor se vale das histórias e personagens da Bíblia para fazer humor e trazer reflexão
Mark Twain - Diários de Adão e Eva e Outras Sátiras Bíblicas, SP, editora Hedra, 2014
Antes de chegar propriamente às sátiras protagonizadas por Adão, Eva e Satã, o leitor vai passar por várias páginas e receber um bocado de informações sobre Mark Twain (1825-1910), o criador de personagens inesquecíveis como Huckleberry Finn e Tom Sawyer. Twain, que na verdade se chamava Samuel Langhorne Clemens, teve uma vida bastante movimentada; não apenas escreveu, mas viajou bastante e fez uma porção de coisas – foi empresário, editor, impressor, piloto de barco, minerador, palestrante. Além disso, como destaca George Orwell em um de seus ensaios, Twain teria pretensões de ser uma espécie de filósofo e também crítico social.
De fato, ele desprezava as religiões; daí que só podia mesmo satirizar a Bíblia, que dizia ser um monte de fábulas e tradições, mera mitologia. Era antirracista, como demonstrou em As Aventuras de Huckleberry Finn, um livro não apenas divertido, mas que satirizava a hipocrisia da sociedade do sul dos EUA. Então aqueles e outros elementos biográficos colhidos pelos editores de Diários de Adão e Eva e Outras Sátiras Bíblicas, obra publicada depois de sua morte, também são bastante interessantes para o leitor conhecer. Quase tanto quanto a versão de Twain para o Jardim do Éden, quer dizer, a criação da espécie humana vista através de seu olhar irônico, humorístico.
Tempos atrás li, do mesmo Twain, outro livro bem-humorado, Dicas Úteis Para Uma Vida Fútil, e me parece que foi lá, mas não tenho certeza absoluta disso, que encontrei uma frase dele dizendo que se Eva tivesse comido melancia em vez de maçã, a Terra teria sido muito diferente do que é. Seria muito diferente mesmo, mas ela provou da maçã... É mais ou menos por aí que os diários bíblicos caminham. Vemos então Adão aborrecido com a curiosidade de Eva, com sua natureza inquisitiva sobre o ambiente que os rodeia, com sua praticidade ao dar nomes às coisas, lugares, animais e demais seres que habitavam o paraíso. Twain também nos apresenta Satã não como um ser diabólico que a tradição judaico-cristã nos ensinou a ver, mas como um ser prestativo, disposto a ajudar Adão e Eva, por conta da inexperiência do casal. Pois é...
Quem leu Caim, de José Saramago, deliciosa narrativa sobre o primeiro assassino da história, mas cujas páginas iniciais também contam sobre o aparecimento de adão e eva (assim mesmo, em minúsculas), obra que dialoga bastante com os escritos de Twain desse volume, pode pensar, com razão, que o escritor português certamente encontrou inspiração nas páginas do americano para escrever um de seus melhores livros, dos mais engraçados da literatura ocidental, penso. Se Saramago leu ou não os Diários... e neles se inspirou não importa. Importa que Twain tem vários livros publicados no país e muitos deles estão disponíveis em bibliotecas públicas, infelizmente pouco frequentadas no Brasil.