Passaporte para uma outra terra - de Cláudio Pena.
Abordou-me, há poucas semanas, em Pindamonhangaba, meu berço, o peregrino escritor de Taubaté, a carregar mochila às costas e a oferecer-me à venda um livro de sua autoria. Comprei-lho. E guardei-o na minha estante de livros, justaposto a outros que eu comprara dias antes; e há cinco dias dela eu o tirei, disposto a lê-lo.
Nas poucas vezes em que me ocupei com a leitura de livros de escritores brasileiros contemporâneos meus, deles esperando algo de bom, frustrei-me. Frustrar-me-ia Cláudio Pena?! Comprei-lhe o livro na esperança de ler-lhe uma história bem narrada, bem escrita. O livro corresponderia às minhas expectativas?
Pedi que não me desiludisse, digo assim, na falta de uma expressão - que não encontro -, que eu poderia entender mais apropriada, Cláudio Pena - o autor de Passaporte Para Uma Outra Terra -, que decidiu pôr no papel as recordações de Tonho Nazareno Sidéreo, homem de uma biografia errática, bandida, a buscar, nos escaninhos de sua memória, obscuros, o que o tempo lhe tirava, para remir, numa reminiscência sincera, feita no silêncio de sua alma pecadora ávida por conforto espiritual, os seus pecados. As suas recordações, fugazes, as cenas de sua vida por ele a não se deixarem agarrar. É o relato memorialístico misto de realismo chão, rasteiro, fescenino, e simbolismo poético, vazado num estilo a transcender a crueza do relato.
É Tonho Nazareno Sidéreo, nas palavras do autor, um tipo de peregrino mercador ambulante de sonhos, que nos anos 1970 principia a sua errática peregrinação, ele, então, um jovem dissimulado, mentiroso, a chafurdar-se nas drogas, a envolver-se com os tipos mais desprezíveis de gente, a engravidar uma jovem, cujo filho ele, que não se dizia feito para ser pai, não assume. E vai-se de Taubaté para São Sebastião. E a Taubaté regressa, e entra em um seminário, que abandona ao saber-se desprovido de vocação para a vida de seminarista, e emprega-se numa repartição pública, que ele, devido ao seu temperamento impulsivo a impeli-lo a incorrer em atos impensados, irrefletidos, tem, para evitar escândalos, de abandonar.
Transcorre o tempo, de movimento inexorável.
Vive Tonho Nazareno Sidéreo em Lorena, e em Itatiaia, e no Sul de Minas Gerais. Lê muitos livros: de Pietro Ubaldi, de Rimbaud, de Alighieri. Ouve músicas clássicas. Escreve contos eróticos, e os vende de porta em porta. E esculpe a Bailarina, e um presépio, este, de gravetos, a sua obra-prima, dizia. Envolve-se com muitas mulheres. Enfim, no epílogo de sua jornada interminável, regressa a Taubaté, à casa de sua mãe.
Arrependido de seus atos, para não vir a enlouquecer, e não permitir que de si escape sua história, confessando-se ao Pai, procura em si mesmo a cura para a sua doença anímica, o lenitivo às suas dores espirituais. Esforço vão; sincero, mas vão. E porque inglória a sua vã batalha, e tal ele não ignora, após dar cabo de sua obra sacrílega, abandona-se às chamas que a consomem, chamas que, também consumindo-lhe o corpo, não se extinguem.
Cuidasse de classificar o livro que estou a resenhar, e inseri-lo numa escola literária, teria eu de desdobrar-me para encaixá-lo em uma delas, e o faria a contragosto, talvez pela obrigação tola de acreditar que toda obra literária tem de ser classificada nesta ou naquela. Digo, portanto, não me cobrando tal incumbência, que é Passaporte Para Uma Outra Terra um livro escrito por um brasileiro. E com tais palavras o que eu digo?! Nada.
Desiludiu-me o livro?! Frustrou-me as expectativas que, por alguma razão, que ignoro, acerca dele criei?! Não. E não. Surpreendeu-me o livro. Agradou-me.
Notei, logo nas primeiras linhas, o estilo suave, que permite leitura fácil, e o bom vocabulário. E logo vi que conta o narrador a história de um homem cuja reputação cobra um relato cru, de vida bandida, e antevi - foi o que as primeiras páginas do livro me inspiraram, eu a me antecipar às duzentas páginas que se seguiriam - cenas e mais cenas de alcova à Marquês de Sade. E não foi o que eu li, para o meu agrado - não entendo criminosas tais cenas, pois subscrevo as palavras do sábio grego: tudo o que é humano não me é estranho. Não me agradaria ler tais cenas, no entanto, no livro à cuja leitura eu me dedicava, pois sei que em não raros casos os escritores ocupam páginas e mais páginas com grosserias pornográficas para ocultar dos leitores a, deles, escritores, escassez de talento literário.
Predestinado a cumprir o seu destino, numa luta inglória - é correto assim adjetivá-la?! -, vã, Tonho Nazareno Sidéreo procura conciliar os seus instintos carnais, aos quais ele se submete, incapaz de sobrepujá-los com sua vontade simultaneamente férrea e frágil, com o desejo de sublimá-los, um ideal, que se revela inalcalçável, que ele busca durante toda a vida. Queria transcender a matéria, e por meio da matéria. Luta vã, que não tem ele recursos para vencer. Enganam-lo suas reminiscências, ele a desejar, ávido para remir seus pecados, ao reconstituir a sua história errática, emprestar-se a si mesmo motivações que não possuía, a crer que tinha ele de cumprir, sob as leis rígidas do livre-arbítrio, um destino.
Desgarrado do mundo, e no mundo perdido, e só, contra o mundo a lutar diutirnamente, Tonho Nazareno Sidéreo, modelo de vadio, e sonhador inconsequente, e idealista de ares místicos, está certo de que o mundo o oprime, e dele em vão esforça-se para se livrar, certo, reconhece, a contragosto, que da matéria é incapaz de escapar, e que está, em sua forma corporal, à matéria umbilicalmente unido; sabe que é um dos ingredientes de seu ser a matéria, o corpo, do qual não pode se desconectar, mas, vãmente, para escapar à perturbação que tal idéia lhe provoca, e a alimentar as suas idiossincrasias, que o agradam, sublima, por meio de sonhos, decodificados num vocabulário poético, a desejar empreender as suas aspirações místicas, veleidades de uma alma exilada na Terra, atormentada em sua condição material, os seus atos mais corriqueiros, mais rasteiros, inclusive os seus pecados. Ele sabe, inconscientemente, ser incapaz de concretizar o seu propósito idílico: do corpo libertando-se, regressar ao seu útero espiritual. Não se compreende, vive a bater-se em si mesmo, daí as suas ações erráticas, tresloucadas. E não é esta a condição humana?!
O relato, pungente, da vida de tal homem, não se perde em descrições naturalistas, que se dedica, única e exclusivamente, a descrever as manifestações fisiológicas dos humanos, destes negando trancendência, valores nobres, sonhos. São vívidas as suas recordações - e com elas o leitor conecta-se. O relato não é o de um fatalista empedernido, de um determinista intolerante emasculado que desistiu de lutar pelos seus sonhos - ciente de sua baixeza, de sua hediondez - e que acredita que toda ação humana é vã. O autor cuida, ciente da vida bandida de seu herói, e da crueza do mundo, de emprestar poesia à prosa, de penetrar no espírito de seu personagem, de extrair, dele, a essência, sem o julgar, e a descrever-lhe o espírito, o que dele há de sublime na sua condição de pecador.
Está em Passaporte Para Uma Outra Terra o relato da vida de um homem sozinho no mundo, humano demasiadamente humano.