A Missa do Ateu - de Honoré de Balzac
É Balzac, o pai das balzaquianas, um escritor moralista, profundamente moralista, que não se negou a ver a imunda realidade parisiense, podre, corrupta, que tão bem conhecia, e que jamais fechou os olhos para os tipos humanos sórdidos que dela participavam, e que, igualmente, não deixou de ver - e de idealizar - os seres humanos superiores, nobres, de sentimentos aristocráticos, mesmo que sejam eles das camadas mais baixas da sociedade - e é este o caso deste singelo e magistral conto, que, estendendo-se, por poucas páginas, e com eloquência realista, contida, exibe a mágica arte do autor, a sua maestria literária, conto que narra a história de um homem de gênio superior, Desplein, um médico, ateu convicto - fervoroso, dir-se-ia -, que relata capítulos dramáticos de sua história para um seu amigo, Bianchou, que muito bem lhe quer, após ele o surpreender, em mais de uma ocasião, na igreja de Saint-Sulpice, a assistir à missa. Os leitores de tão singelo e grandioso conto, intrigados, no desejo de saber as razões que conduzem um ateu à missa, acompanham, interessados, a história que o herói de Balzac conta a Bianchou.
O relato de Desplein, pungente.
Tinha o pobre, miserável Desplein, quando de pouca idade, nos primórdios de sua vida adulta, antes de vir a prestar exames para exercer a medicina, ainda no seu tempo de estudante, a viver em tugúrios, sem eira nem beira, sem a perspectiva de um futuro límpido, promissor, alvissareiro, a comer o pão-que-o-diabo-amassou, a se deparar com dificuldades que trituram todo e qualquer ser humano, seu anjo-da-guarda na pessoa de Bourgeat, que desejava, era o seu sonho, comprar um cavalo e um tonel, sonho, este, que sacrificou ao se dedicar, abnegadamente, durante muitos anos, ao seu jovem protegido, Desplein. Católico, Bourgeat, um legítimo cristão, de bom coração, de coração de ouro, em Desplein vendo um homem de talento superior a ele dedicou-se, de corpo e alma, sacrificando-se heroicamente, a ponto de experimentar tribulações massacrantes, condições de vida miseráveis, sem que jamais se lhe aflorasse à cabeça o desejo de convertê-lo à religião cristã. Ajudou-o por ajudar, porque amava-o, e do fundo do coração, sem reservas. Jamais lhe tangenciou a cabeça cobrar-lhe algum compromisso com a religião. Era Desplein, ele sabia, ateu, e ateu, talvez - e tal detalhe Balzac deixou em aberto - tenha morrido. Não se sabe. Os leitores não sabem o que lhe ia na alma. Bianchou, que o acompanhou até o leito de morte dele, também não sabe. Conquanto ateu, Desplein, além de não desrespeitar o cristianismo, e de reconhecer a nobreza de sentimentos e a pureza da alma e o desprendimento e a abnegação de um fervoroso e autêntico católico, pedia à vida o presenteasse, a ele, Desplein, com o poder de crer na religião cristã, e com iguais vigor e sinceridade à que Bourgeat, seu herói, seu anjo-da-guarda, seu protetor, possuía.
O estilo de Balzac envolvente, cativante, agarra o leitor, pelo pescoço, e, sem impôr-lhe qualquer força, leva-o, de tão sedutor é,consigo.