Carne e pedra - Richard Sennett
Richard Sennett - Carne e pedra: O corpo e a cidade na civilização ocidental, RJ, editora BestBolso, 2016
A primeira versão de Carne e Pedra – O Corpo e a Cidade na Civilização Ocidental - surgiu em 1992, quase quinze anos após o início de uma parceria do autor com Michel Foucault (1926-1984) num projeto em que ambos estavam interessados na investigação da história do corpo humano Tal projeto foi interrompido com a morte do francês, mas acabou resultando neste livro de Richard Sennett cuja versão definitiva ocorreu em 1994, aqui traduzida há algum tempo já.
Carne e Pedra não me pareceu uma obra assim tão fácil de ler, pois exige conhecimentos um pouco mais profundos de história, psicologia, filosofia, sexualidade e urbanismo, entre outras coisas, que nem todo leitor mediano possui. Pelo conteúdo apresentado e o modo como analisa um ou outro episódio histórico, penso que o livro tende a ser mais apreciado por estudantes, mestres e doutores em Ciências Humanas do que por simples leitores, curiosos.
Resumidamente este é um estudo acerca do modo como as cidades agem sobre seus habitantes e como estes agem sobre elas. Quanto à dificuldade de leitura, é verdade que a partir da Parte II (denominada Movimentos do coração) ela me pareceu menor, o mesmo ocorrendo com a Parte III (Artérias e veias), ao contrário da Parte I (Os poderes da voz e dos olhos), mais complexa, difícil. Tomei conhecimento da obra há uns dois anos, através de um programa da tevê inglesa com um especialista em Grécia Antiga que citava este livro, mas de quem não lembro o nome, tampouco o do programa.
Pareceu-me um livro atraente então. E é, mas Sennett não dá muita folga para o leitor comum, não. De todo modo, há muita coisa interessante aqui, a começar por Atenas e Roma em plena Antiguidade. Outras cidades são analisadas em diversos momentos históricos como Paris, Veneza, Londres e Nova York, sempre com destaque para a relação entre corpo (carne) e cidade (pedra), como o título do livro se apresenta.
Atenas se relacionava com o corpo de maneira diferente da praticada em Esparta, por exemplo, que era uma cidade voltada para a guerra, não para as artes e a política (democracia), como aprendemos desde cedo. Destaque para Péricles, um dos mais importantes líderes democráticos de Atenas. Depois, escrevendo acerca de Roma, Sennett se debruça sobre o legado do imperador Adriano, aquele mesmo que Marguerite Yourcenar imortalizou ficcionalmente no ótimo Memórias de Adriano, aqui citado.
Sennett também analisa Constantino, o imperador que permitiu o culto cristão em Roma, com a adoção do monoteísmo em detrimento dos deuses politeístas romanos. O surgimento dos primeiros cristãos é visto sob a ótica nietzschiana dos “gaviões e cordeiros”, sendo que as aves de rapina são os pagãos e os cordeiros, obviamente, os cristãos. Em vez da carne (corpo) agora o que importa é o espírito; importa o celestial e não os reinos na terra. Mas a alma não poderia renegar a necessidade de um lugar no mundo: daí pedra, cidade, templos.
Depois Sennett prossegue seu estudo destacando Paris e Veneza, já nos tempos medievais. É a Parte II do livro. Muito mais do que considerações históricas e geográficas, ou apenas arquitetônicas, ele se vale também de psicologia, economia, antropologia e outras áreas do conhecimento e até mesmo de uma peça de Shakespeare para continuar tecendo comentários sobre como os habitantes de Paris e Veneza naqueles tempos usavam os espaços públicos e privados.
Enfim, como se relacionavam com o espaço urbano, como circulavam nele, que odores sentiam, como se alimentavam, se estavam protegidos por muralhas ou não etc. Acerca de Paris ele toma como foco de atenção a construção da catedral de Notre Dame; para a cidade italiana usa como referência a conhecida peça de Shakespeare, O Mercador de Veneza, já que vai tratar também, e com mais profundidade, do gueto judeu naquela cidade, então particularmente dedicada ao comércio.
A Parte III tem o título de Artérias e Veias, mas poderia se chamar Artérias e Vias. Explico: em 1628 William Harvey publicou suas descobertas sobre a circulação do sangue, pois até ali se acreditava que o corpo humano era governado pelo calor inato, que explicaria as diferenças entre homens e mulheres e entre humanos e animais. Pouco mais de um século depois Adam Smith publica A Riqueza das Nações (1776), em que trata, entre outras coisas, da circulação de mercadorias etc. Sennett informa que já no tempo de Harvey suas descobertas sobre a circulação do sangue e a respiração levaram a novas ideias a respeito da saúde pública.
O próprio Smith pensava que as aglomerações urbanas propiciavam o surgimento de doenças (como ele tinha razão faz tempo!). Isso influenciou o desenho arquitetônico das cidades, que passaram a ter ruas mais largas (ou artérias, se se quiser) e vias (ou veias, idem) de acesso a diferentes pontos de modo a dar um respiro para a circulação urbana, facilitar o deslocamento das pessoas e mercadorias. No centro da cidade, seu coração, edifícios administrativos, o poder, enfim. A geografia de Paris e os acontecimentos envolvendo a Revolução de 1789 fecham o capítulo sobre a cidade.
Da Paris revolucionária saltamos para a Londres dos anos iniciais do século XX, época do escritor E. M. Forster, o autor de Howards End (1910), que nesse ótimo livro aborda as contradições entre cidade e campo, momento em que se verificava grande crescimento da população urbana em detrimento do campo, da classe latifundiária: eram novos tempos, iniciados já no século XIX. Fisicamente essas transformações serão representadas por três grandes projetos londrinos: a construção do Regent’s Park e Regent Street e do metrô da cidade finalizado em 1863.
Do mesmo modo, um pouco antes, em 1850, em Paris se iniciara a reconstrução das ruas da cidade pelo barão Haussmann, obra de fundamental importância para a circulação urbana. Mais algumas páginas e Sennett parte para a multicultural Nova York, mais especialmente para o bairro boêmio de Greenwich Village dos anos 1970, e esta parte encerra também a Conclusão do livro, que contém um resumo das principais ideias desenvolvidas pelo autor. Relendo agora essas anotações ao final da leitura, percebo que nem de longe meus comentários conseguiram abranger a complexidade e riqueza de ideias e informações trazidas ao leitor por Carne e Pedra. Mas é isso e talvez alguém mais se interesse pelo livro.