Mr. Mercedes
Que atire a primeira pedra quem jamais maquinou a hipótese de propósitos verdadeiramente nefastos terem sido gestados direto de um aparente e inofensivo carrinho de sorvetes. Em Mr. Mercedes, de 2014, obra inaugural da chamada trilogia Bill Hodges assinada por Stephen King, composta também pelos livros Achados e Perdidos (2015) e O Último Turno (2016), o inimigo segue à espreita, com um astuto serial killer literalmente conduzindo um daqueles carros tão pueris quanto medonhos, permitindo ecoar um sonido quase sempre aterrador.
O enredo de Mr. Mercedes, um envolvente e descomedido thriller policial atado pelo autor, assim como os dois subsequentes, conserva elementos eternizados na vastidão de suas obras, jamais preterindo a hipótese de suscitar o medo, seja em menor ou maior grau, enredando o temor, nesse caso um experimento construído com absoluta ênfase na maldade humana.
A narrativa dá seus primeiros passos com uma passagem deveras literal. Pessoas se amontoavam durante a madrugada em uma descomunal fila para uma feira de empregos. Sem prévio aviso, um possante Mercedes varou a escuridão, arrancando com invulgar disposição contra uma indefesa multidão de inocentes. A cada pessoa atingida, a esperança coletiva era drenada em detrimento de uma verdadeira enxurrada de sangue.
O solitário e cruento sujeito por trás do volante não hesitou em engatar a marcha ré, acelerando forte em uma corrida na qual o prêmio máximo consistia em colher o maior número possível de almas, mas a missão não podia ser dada como perdida diante da possibilidade de também estraçalhar alguns ossos, gerando incomensurável dor, seja nas vítimas ou mesmo naqueles à sua volta.
Apesar dos esforços do detetive Bill Hodges, o caso não foi elucidado e por isso aquela noite, marcada pela morte de oito pessoas, entre elas uma criança recém-nascida, e outras15 feridas, ainda assombra o veterano, que mesmo aposentado não consegue desvencilhar os pensamentos do famigerado Assassino do Mercedes, tendo de conviver também com o súbito desejo de pôr fim a própria vida.
Mr. Mercedes tem como um de seus cabedais o notável artifício de não se limitar ao ponto de vista do protagonista diante de suas agruras, intercalando com o maquiavélico assassino. A partir daí, a trama abre espaço para Brady, um prodígio em informática com notáveis problemas psicológicos, boa parte deles atrelada à relação controvertível e incestuosa mantida com a mãe.
Além de personagens expansivos, como a dileta Holly e o carismático Jerome, Mr. Mercedes acerta bem no alvo quando o assunto é vilania. Brady não possui superpoderes como Randall Flagg, o temível Homem Escuro, ou como o palhaço Pennywise, mas se mostra uma ameaça atemorizante. Com menos de 30 anos, mostra-se uma persona fria e calculista, ostentando um acentuado poder de persuasão.
O primeiro capítulo da trilogia desponta como um thriller intenso e envolvente, com um frenético jogo de caça e caçador, no qual os papéis são invertidos frequentemente. Ainda assim, a obra se desenrola indo muito além dessa premissa, sendo uma história sobre o sentimento de perda, superação de limites e desejo por justiça. Por isso, ao alcançar o desfecho, o fiel leitor agradece que a trama esteja apenas no início. Ainda há muita coisa pela frente, perdurando o súbito desejo de, o quanto antes, esmiuçar a sequência, Achados e Perdidos.
Vale a lembrança: a trilogia Bill Hodges foi adaptada para uma série televisiva, com um total de três temporadas (uma equivalente a casa livro), estrelada pelo ótimo Brendan Gleeson.