Crônica da casa assassinada - Lúcio Cardoso
Lúcio Cardoso - Crônica da casa assassinada, RJ, Civilização Brasileira, 2004
O poeta pernambucano Manuel Bandeira ficou bastante impressionado com Crônica da Casa Assassinada (1959), do escritor mineiro Lúcio Cardoso (1912-1968) e registrou: "Os personagens do romance - Nina, Valdo, Ana, o coronel, o farmacêutico, o incrível Timóteo, todos, continuam a viver na minha imaginação, inapagáveis." E também na memória de muitos outros leitores, certamente. Pois são cerca de quinhentas páginas de reconhecida escrita fina, poética grande parte do tempo.
Além de volumoso, à primeira vista o livro pode parecer de difícil leitura. Não existe um narrador único: a narrativa é fragmentada, composta por cartas, anotações em diários, memórias, confissões e depoimentos; são vários personagens, cada um contando sua versão dos acontecimentos; a ação não segue linearmente, ela avança e volta no tempo; e por último, coisas extraordinárias acontecem. Porém não se trata de uma obra confusa ou hermética, de modo algum. Embora por vezes sua densidade torne a leitura dramática, tensa, asfixiante.
O prefácio de André Seffrin (Uma Gigantesca Espiral Colorida) situa o romance no tempo e na carreira de Lúcio Cardoso. A apresentação é de Fausto Wolff, que destaca o impacto da obra nas letras brasileiras, concluindo que "Quando o leitor sair da casa assassinada, certamente não será mais o mesmo e nem verá o mundo com os mesmos olhos." Muito antes do final, quando acompanhamos os diálogos travados por Nina e Ana, um dos pontos altos do romance, já temos a certeza de que estamos diante de uma indiscutível obra-prima. Mas o final mesmo (Pós-escrito numa carta de Padre Justino) é surpreendente...
Crônica da Casa Assassinada é um mergulho numa narrativa altamente introspectiva, com toques de Faulkner e Dostoievski, conforme Benjamin Moser (o autor de Clarice,) destacou na introdução da edição americana de 2016. Faulkner parece estar presente pela atmosfera de decadência social e moral criada com maestria por Lúcio Cardoso; já Dostoievski nos vem à lembrança pelas questões postas aqui e ali pelos personagens, discorrendo sobre o bem e o mal, o pecado, Deus (e o Diabo). Pensando em autores nacionais, podemos encontrar nessas páginas elementos presentes nas obras de Nelson Rodrigues (desejo e decadência) e de Clarice Lispector (introspecção, intimismo), de quem Cardoso foi amigo e mentor.
Para voltar aos russos, a família Meneses é daquelas que se encaixam perfeitamente na frase de abertura de Anna Karenina, de Tolstoi. A que diz que as famílias felizes são todas parecidas, mas que as famílias infelizes o são cada qual a sua maneira. A história dos Meneses é marcada por adultério, incesto, loucura e decadência, não apenas pela infelicidade em estado bruto... Lúcio Cardoso nos entrega personagens torturados, desesperançados, delirantes. Gente que vive entre as sombras e pelos cantos, sempre à espera de que uma tragédia se anuncie. E ela se anuncia e se realiza.
Desse modo, ler Crônica da Casa Assassinada se torna uma aventura literária, conforme escreveu Wolff: "sem perder o domínio da narrativa, o autor lança mão de todos os expedientes (antigos e modernos e os que ele mesmo inventa) para dar acabamento à sua obra máxima." Uma aventura da qual o leitor sai altamente recompensado, como somente as grandes obras costumam proporcionar.
Para finalizar, o elogio do crítico Wilson Martins, que escreveu que Lúcio Cardoso alcançou com este livro a "difícil vitória que é a autenticidade do anormal, a verossimilhança no extraordinário. À medida que a história avança, um dos sentimentos mais vivos do leitor é a admiração pela coragem do romancista, pelo desafio que propõe e aceita, ao mesmo tempo, ao invadir um dos domínios mais turvos da literatura e da vida." Por tudo isso vale demais a pena ler esta obra-prima de nossas letras.