A Causa Secreta (Várias Histórias) - de Machado de Assis.
Não é Machado de Assis um escritor para leitores desatentos e apressados, destituídos de suspicácia. Ele pede leitores sagazes, capazes de captar as sutilezas das tramas por ele urdidas e paciência para acompanhar-lhe a descrição contida, discreta, do que vai na alma de seus personagens, os sentimentos que os movem, o que lhes vai, oculto nos escaninhos do espírito, inacessível a eles mesmos. Em A Causa Secreta, o sexto conto enfeixado no volume Várias Histórias, dá o Bruxo do Cosme Velho uma pequena amostra de seu talento, raro. Não é ele, neste conto, e nos cinco que o precederam, um psicólogo a analisar, detidamente, e com profundidade iluminadora, as suas criaturas, dissecando-lhes as taras, os traumas, expondo-as, por inteiro, aos seus leitores. Limita-se a descrevê-los, em rápidas pinceladas, e a narrar-lhes, num estilo todo seu, singular, as aventuras, com saudável dose de comentários irônicos, e sarcásticos, e menções a heróis da literatura e da história, sejam eles monarcas, músicos, dramaturgos, enfim, pessoas cujos nome e obra os livros registram. Não se perde nos inextricáveis labirintos psicológicos de seus personagens, pois ele não os adentra; não lhes envereda pelos domínios dantescos do subconsciente. Descreve, deles, o que está no rosto, na pele, iluminado pelas ações que eles empreendem.
São três os protagonistas deste conto, Fortunato Gomes da Silveira, e Maria Luiza, sua esposa, e Garcia, médico.
Dos três, é Fortunato o personagem que o Bruxo, nele concentrando sua atenção, descreve direta, e, por meio de Garcia, indiretamente. Maria Luiza descreve-a Machado de Assis não em função de si mesma, mas como um recurso do qual ele se apropria para inspirar ao leitor suspeitas acerca do caráter de Fortunato, reforçando, assim, as peculiaridades únicas do tipo que ele representa - descreve-a, para descrevê-lo.
Há, neste conto, e no A Cartomante, e no Uns Braços, um tema recorrente nas obras de Machado de Assis, caro a ele, o do adultério, o do homem seduzido por uma mulher casada. No A Cartomante a relação ilícita se consuma; em Uns Braços, há o amor platônico, num misto de ingenuidade, inocência, e luxúria. E neste A Causa Secreta, indica a narração, Garcia apaixona-se por Maria Luiza, e entre eles há um acordo tácito acerca dos sentimentos de ambos e das suspeitas mútuas: Maria Luiza não corresponde ao amor que Garcia lhe dedica, e lhe não realiza os sonhos idílicos.
Em se tratando de um conto do criador de Capitu, tem o leitor de redobrar a cautela, e não se precipitar em conclusões apressadas.
Estreitando os laços de amizade e confiança, Garcia e Fortunato associam-se num empreendimento, uma Casa de Saúde, de cuja administração assume Fortunato a responsabilidade, desincumbindo-se de suas atividades com dedicação, desenvoltura e eficiência incomuns. E estuda Fortunato anatomia e fisiologia. E envenena gatos e ratos. E para horror de sua esposa e de Garcia, numa exibição de indiferença, sadismo, mutila, com uma tesoura, no gabinete de sua casa, um rato, levando-o ao fogo, provocando-lhe morte lenta e dolorosa.
Na cena derradeira, Fortunato exibe sua personalidade desprovida de nobreza, e traços de indiferença, insensibilidade, personalidade destituída de sentimentos, diremos, humanos. Revela-se um tipo frio, calculista, desumano, de quem tem em todo os seres vivos unicamente objetos inanimados que servem às suas veleidades científicas. Traços de personalidade que dele traduzem a desumanidade, fazendo-o dócil aos horrores que o ser humano já testemunhou, indiferente às dores e aos sentimentos alheios. É Fortunato uma criatura que apoiaria, para atender à sua curiosidade científica, assim direi, os mais horrendos experimentos promovidos pelos famosos doutor Frankenstein e doutor Moreau, e pelo célebre doutor Mengele. É Fortunato um emblema da crueldade humana. Pessoas de seu tipo favorecem o avanço de políticas desumanas, de extermínio, afinal, para elas todas as coisas são meros objetos de estudos.