Como viver - Sarah Bakewell
Sarah Bakewell - Como viver: ou Uma biografia de Montaigne em uma pergunta e vinte tentativas de resposta, Rio de Janeiro, editora Objetiva, 2012
Porque Era Ela, Porque Era Eu, de Chico Buarque, uma das faixas do álbum Carioca (2006), remete para o pensador francês Michel de Montaigne (1533-1592). O personagem de Chico resumia naquela frase tudo o que não sabia explicar na relação com a mulher, numa canção que é bastante curta, sintética. Montaigne de fato escreveu “Porque era ele, porque era eu”, uma fraterna declaração a um amigo que morreu aos 33 anos, jovem demais, mesmo para a época. Foi desse modo que resumiu a profunda amizade que o ligou eternamente a Étienne de La Boétie (1530-1563), também um escritor. Para ser mais exato, Montaigne escreveu o seguinte no conhecido ensaio Da amizade:
Se me obrigarem a dizer por que o amava, sinto
que é algo que não pode ser expresso, exceto pela resposta:
Porque era ele, porque era eu.
Chico Buarque, claro, não é mencionado nessa biografia de Montaigne, com muitas referências a conhecidos escritores e pensadores. Dentre eles Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), Denis Diderot (1713-1784), Gustave Flaubert (1821-1880), Friedrich Nietzsche (1844-1900), Stefan Zweig (1881-1942) etc. Usei o exemplo da canção para mostrar como a inglesa Sarah Bakewell nos apresenta a vida e as ideias do pensador francês: de um modo bastante informal sempre que pode, sem tanto academicismo, muito comum em biografias de filósofos, pensadores, intelectuais. Pelo título apenas, Como Viver, pode parecer que seja um livro de auto ajuda, impressão logo desfeita por seu subtítulo: “Ou uma biografia de Montaigne em uma pergunta e vinte tentativas de resposta”. São questões que Montaigne mesmo se colocou ao longo da vida e que Bakewell agora nos relata a que conclusões ele chegou (quando chegou; há questões que deixou em aberto), que exemplos ou lições tirou ou não de seus questionamentos.
Tanto as perguntas como as conclusões de Montaigne sobre como viver -- como ter um bom relacionamento com as pessoas, como lidar com a violência, como se adaptar à perda de um ente querido, como envelhecer, como nossa mente cria obstáculos para si mesma, como choramos e rimos pela mesma coisa etc.-- estão em Os Ensaios. Uma obra volumosa que na edição de 2010 da Companhia das Letras-Penguin, uma seleção de textos apenas, ou seja, não contém todos os ensaios, por exemplo, não traz o capítulo 28, aquele sobre a amizade, onde se encontra sua declaração sobre La Boétie, abrange mais de 600 páginas, quase um calhamaço. Em 2016 a Editora 34 publicou a edição integral -- Ensaios -- com 1034 páginas, reunindo tudo o que Montaigne escreveu, modificou ou acrescentou desde a primeira edição em 1580 até aquela que se considera a versão definitiva, publicada em 1588.
A cada edição (e foram várias) ele fazia alterações ou acréscimos no que já havia publicado ou incluía novos capítulos tratando de novos assuntos. Entende-se porque fazia isso, como se pode deduzir de uma de suas ideias mais difundidas: "O mundo é movimento; tudo nele muda continuamente. Não posso fixar o objeto que quero representar: move-se e titubeia. É pois no momento mesmo em que o contemplo que devo terminar a descrição; um instante mais tarde não somente poderia encontrar-me diante de uma fisionomia mudada, como também minhas próprias ideias possivelmente já não seriam as mesmas." O modo como Montaigne via o mundo, a diversidade de coisas que a ele se apresentava sob variadas formas, sua pessoa mesmo, suas idiossincrasias, defeitos, qualidades e virtudes, bem como as demais pessoas que habitavam o planeta, tudo isso constitui a essência de Os Ensaios. Assim, ficou fascinado ao conhecer os índios tupinambás levados à França por Villegaignon, invasor do Rio de Janeiro, e o modo de vida selvagem acabou virando o tema do ensaio Sobre os Canibais.
Seus ensaios são praticamente sobre todas as coisas, sofrendo alterações a cada edição, como já foi dito, e isso Montaigne fez até próximo de sua morte. Pela abrangência do livro, um leitor americano lembrado por Bakewell, que tem a edição completa da obra, afirma que ela “não é exatamente um livro, mas um companheiro para a vida toda.” Um livro de cabeceira, como se costumava dizer tempos atrás. Bakewell lembra que outro desses leitores fieis de Montaigne, o austríaco Zweig, já citado, se entusiasmou tanto com sua releitura de Os Ensaios, quando já residia no Brasil, fugindo do nazismo (na primeira vez, quando jovem, não tinha apreciado tanto assim o volume), que resolveu escrever um ensaio biográfico, Montaige: Dois Mundos (2015, Mundaréu, 104 páginas), onde resume algumas ideias do pensador.
Como Bakewell diz, mesmo sabendo que Montaigne não apreciava pregações, Zweig conseguiu nesse ensaio, a partir dos textos originais franceses, destacar algumas regras gerais que ela chamou de “oito liberdades”, as quais poderiam ajudar alguém a viver melhor, a saber:
Seja isento de vaidade e orgulho.
Seja isento de crença, descrença, convicções e partidos.
Seja isento de hábitos.
Seja isento de ambição e cobiça.
Seja isento de família e vizinhança.
Seja isento de fanatismo.
Seja isento de destino: seja senhor da sua própria vida.
Seja isento de morte: a vida depende da vontade dos outros, mas a morte, da
nossa própria vontade.
Zweig, prezando esta última liberdade - que interpretou em Montaigne de uma ideia vinda por meio de Sêneca - e tomado pela depressão suicidou-se em 23 de fevereiro de 1942, juntamente com a mulher.
Se mesmo com o consolo da releitura de Os Ensaios as coisas não foram fáceis para ele, tampouco tudo serão facilidades no caminho do leitor que se aventurar pela leitura completa da obra. Nem mesmo de Como Viver: na vida de Montaigne houve muitos episódios que envolveram lutas políticas (divisões dentro da própria França) e religiosas (conflitos sangrentos entre católicos e protestantes), às vezes ambas ao mesmo tempo, e esses fatos, envolvendo o que há de pior nos seres humanos, ambição e intolerância, principalmente, nem sempre nos parecem suficientemente interessantes ou prazerosos para se acompanhar a fundo. Da mesma forma, quando entram em cena alguns de seus críticos mais combativos.
Ao tratar de René Descartes (1596-1650) e Blaise Pascal (1623-1662), críticos do pensamento de Montaigne, a autora é obrigada a explicar as ideias de cada qual tendo então de recorrer a conceitos filosóficos nem sempre de fácil compreensão para o leitor comum, ideias que vinham desde os filósofos gregos. Por outro lado, entre os apreciadores de Montaigne, ainda no campo da filosofia, estava o já citado Nietzsche, que o considerava “a mais livre e poderosa das almas”, e assim registrou seu definitivo depoimento sobre o francês: “O fato de este homem ter escrito aumentou verdadeiramente a alegria de viver neste planeta.” Isso não é pouca coisa vindo do complexo filósofo alemão, convenhamos. Bakewell mostra então ao leitor o que de Montaigne pode ser encontrado na filosofia de Nietzsche.
Com suas ideias sobre como viver bem, algumas delas decorrentes do conceito de ataraxia (dos antigos gregos, significando imperturbabilidade, equilíbrio, estar livre da ansiedade), Montaigne está muito mais para livre-pensador do que para filósofo. Foi o criador do ensaio como forma breve de expressão literária. Tinha origens na nobreza francesa, estudou direito, era católico num tempo de acirradas lutas religiosas em seu país, morava numa grande propriedade com castelo, foi vinicultor, prefeito de Bordeaux (por determinação real) entre 1581 e 1585, e conselheiro informal do rei Henrique IV. Sofria de cálculos renais e morreu de uma complicação da doença.
Apesar de ter vivido há vários séculos é considerado, por suas ideias, um homem contemporâneo, moderno. Capaz de registrar coisas banais em seus textos, mas reveladoras de sua personalidade, tais como: “As viagens só me aborrecem por causa das despesas, sempre grandes demais para as minhas posses.” Mesmo assim viajou pela Alemanha, Suíça e Itália durante dezessete meses; passou a maior parte do tempo neste último país, que apreciava por suas realizações culturais, incluindo as ideias de Sêneca. Dos gregos antigos admirava sobretudo Plutarco, mas mesmo tendo vontade de conhecer o país, nunca esteve na Grécia. Sobre o romano e o grego escreveu o ensaio Defesa de Sêneca e de Plutarco.
Do século XVI aos nossos dias seus escritos passaram por altos e baixos, mas ninguém nega que ele tenha sido um pensador original (ou egocêntrico para alguns, pois escrevia muito sobre si mesmo, até mesmo sobre seus cálculos renais). Como destaca Bakewell, “a ideia de escrever a nosso próprio respeito para criar um espelho no qual outras pessoas reconheçam a própria humanidade — não existiu sempre. Teve de ser inventada. E, ao contrário de muitas invenções culturais, pode ser atribuída a um único indivíduo: Michel Eyquem de Montaigne”, que era seu nome completo. A “modernidade” de Montaigne, um homem do Alto Renascimento, que algumas vezes foi tachado de antifeminista, no entanto registra que ele escreveu o seguinte: “As mulheres não estão erradas em absoluto quando rejeitam as regras da vida introduzidas no mundo, na medida em que foram estabelecidas pelos homens sem a participação delas.” Afirmar isso, no tempo em que viveu, século XVI, era ser muito moderno, não?
Sobre a própria mulher de Montaigne, Françoise de La Chassaigne, seu casamento e filhos – teve vários, mas somente uma filha sobreviveu –, a vida cotidiana que levava, muitas situações que viveu, o que pensava sobre sexo, amizade, política, monarquia, religião, canibalismo etc., vamos nos informando ao longo da leitura de Como Viver. São muitas histórias que vão sendo entremeadas com aquilo que Bakewell mais destaca em Montaigne: suas ideias filosóficas ou práticas sobre aqueles assuntos e outros, aquilo que o fez conhecido e respeitado (nem sempre, contudo) há mais de quatro séculos. Montaigne é um pensador bastante original, que todo leitor que se julga bem informado deveria conhecer um pouco mais. Seja através de seus próprios escritos (Os Ensaios), seja por meio de outros autores.
É o caso da ótima biografia escrita por Sarah Bakewell, que facilita muito essa tarefa e que, por momentos, se lê como se fosse um bom romance. Eu nunca soube muita coisa a respeito de Montaigne (como não sei a respeito de tantas outras coisas) e agora aprendi um bocado sobre ele, me fez pensar em ler um ou outro de seus ensaios.