Por que escrever? - Philip Roth
“Ler romances é um prazer profundo e singular, uma atividade humana absorvente e misteriosa”: palavras de Philip Roth
Philip Roth - Por que escrever, São Paulo, Companhia das Letras, 2022
Críticos e leitores reconhecem Philip Roth (1933-2018) como um dos mais importantes escritores americanos do século XX e do início do XXI. Sua obra pode ser colocada ao lado da de outros grandes romancistas do país -– penso em John dos Passos, William Faulkner, Saul Bellow, citando apenas alguns dos principais. Roth mesmo responde à pergunta que dá título ao livro e desse modo o volume se torna fundamental para entendê-lo e à sua escrita: “sem disfarces, invenções e artifícios do romance”, como ele próprio afirma.
Desse modo, Roth se permite em certo trecho dizer modestamente ao entrevistador do The Paris Review que com sua ficção não pretende mudar alguma coisa na cultura. O que ele quer mesmo é conquistar profundamente quem o lê: “Quero é possuir meus leitores enquanto estiverem lendo meus livros -- se possível, possuí-los de formas que outros escritores não possuem.” Na verdade, quer não apenas isso, mas um pouco mais ainda. Que esses leitores depois voltem:
“[...] exatamente como são, a um mundo em que todos os demais estão se esforçando para mudá-los, persuadi-los, aliciá-los e controlá-los. Os melhores leitores vêm para a ficção para se livrar de todos esses ruídos, para liberar a consciência que de outro modo está condicionada e limitada por tudo o que não é ficção.” E conclui sabiamente: “Isso é algo que toda criança, apaixonada por livros, compreende na hora, embora as crianças não tenham de forma alguma essa ideia da importância da leitura.”
Tudo isso e muito, muito mais, encontramos nas mais de 550 páginas de Por Que Escrever? Conversas e ensaios sobre literatura (1960-2013), publicado no Brasil pela Companhia das Letras em 2022. Originalmente lançado em 2017 o volume apresenta trinta e sete textos entre ensaios, entrevistas e discursos, além de uma pequena, mas bastante completa cronologia no final. É tão importante para conhecer o escritor quanto sua biografia escrita por Claudia Roth Pierpont (que não é parente dele), Roth Libertado, ótimo lançamento da Companhia das Letras em 2015.
Roth nos conta sobre sua amizade com grandes autores americanos e estrangeiros desde que sua carreira de escritor deslanchou no final dos anos 1950. Ao longo do tempo ele conversou e ou trocou correspondência com eles, visitou-os em seus países, conheceu alguns de seus cônjuges ou familiares, como as irmãs de Franz Kafka etc. Nessa lista estão escritores do porte de Primo Levi, Aaron Appelfeld, Ivan Klima, Milan Kundera, Edna O'Brien, Mary McCarty, Isaac B. Singer. Além das conversas com esses notáveis temos também sua análise da obra de Saul Bellow, Bernard Malamud e Bruno Schulz.
Roth admirava todos eles, mas o autor que mais se destaca aqui, além dele próprio, claro, é o tcheco Kafka, citado inúmeras vezes e personagem de um ensaio especial. Roth também lembra o prazer que foi lecionar numa universidade, durante um semestre, sobre os principais títulos do autor de A Metamorfose. Nada do material apresentado em Por Que Escrever? é novidade. Tudo já havia sido publicado antes, em diversos veículos, tanto que o livro, com a reunião de todos os textos, na sequência em que o lemos, parece assim meio sem unidade. Mas ela é dada pelo próprio Roth, por sua incontestável importância na literatura dos últimos 50 anos.
O início se destaca com Roth tratando das polêmicas que envolveram a publicação de O Complexo de Portnoy (1969), seu romance mais famoso e vendido ao longo da carreira, considerado obsceno, escandaloso, ofensivo aos judeus etc. Notáveis representantes da comunidade judaica americana levaram muito tempo criticando Roth não apenas por esse livro, também porque ele seria um judeu que não se comportava de acordo com o que se esperava de outro igual, que exaltasse o caráter de seu povo e não que escrevesse sobre um jovem masturbador viciado em sexo, coisas assim. Um rabino de Nova York chegou mesmo a perguntar: “O que está sendo feito para calar esse homem?” Roth lembra, entre outras coisas, que mais do que judeu ele era americano como os pais, apenas seus avós eram imigrantes. Mas isso não significava que não podia escrever sobre os judeus americanos ou não.
Depois de tratar do suposto antissemitismo de que era acusado e descartá-lo, claro, depois de exaltar Kafka e reproduzir algumas entrevistas que concedeu a destacados órgãos de imprensa mundiais e também aquelas que realizou com os escritores estrangeiros que admirava -- parte deles do leste europeu, então dominado pela antiga União Soviética --, Roth se volta com profundidade para a questão inicial: por que escrever, para que servem os livros, especialmente os romances? Então ele analisa seus próprios livros, que foram 31 publicados. São 27 romances e 4 obras de não ficção, lançados desde 1959, ano em que saiu o volume de contos Adeus, Columbus, até 2010, ano da publicação de Nêmesis. Desses todos li 18, o que fez de Roth não apenas um autor favorito como o que mais li até o momento.
Na já citada entrevista a The Paris Review, um dos melhores textos do volume, senão o melhor, Roth diz que começar um livro era sempre desagradável, porque não tinha “[...] nenhuma certeza sobre os personagens e o problema central, e é disso que preciso para dar a partida. Pior do que não conhecer o assunto é não saber como tratá-lo, porque, afinal de contas, isso é tudo.” Mas, como se sabe, ele prosseguia em frente sempre, mesmo tendo de, por vezes, jogar fora cerca de cem páginas já datilografadas, que não serviriam para mais nada, agora que já tinha encontrado o rumo da nova obra. Fez isso por mais de 50 anos e nos legou histórias inesquecíveis como O Complexo de Portnoy (1969), Patrimônio (1991), O Teatro de Sabbath (1995), Pastoral Americana (1997), A Marca Humana (2000), Indignação (2008), os livros dele que mais apreciei.
O entrevistador prossegue com perguntas do tipo quantas horas por dia ele escrevia (respondeu que trabalhava o dia todo, praticamente todos os dias da semana), se as leituras de outros autores o influenciavam (serviam para que descansasse um pouco do que estava fazendo), se tinha crises enquanto escrevia (sim, problemas para tornar as coisas críveis para todos), se a psicanálise o ajudou de alguma forma (claro, possibilitou que criasse Alexander Portnoy e sua história), se Nathan Zuckerman, personagem constante em seus livros, seria mesmo seu alter ego (não, não pense que tudo é autobiográfico em Roth, pois não é), e finalmente o que seus livros diziam aos leitores.
Roth fazia uma distinção entre os leitores comuns e os outros, digamos, a chamada intelectualidade americana ou europeia. Acreditava que “[...] os romances só causam efeitos significativos naquele punhado de pessoas que são escritores, e cujos próprios romances são obviamente afetados de forma significativa pelos livros dos outros romancistas. Não consigo ver nada parecido acontecendo com o leitor comum, nem esperaria que acontecesse.” E prossegue, quando o entrevistador lhe pergunta então do que serviam os romances para os leitores comuns, nós todos:
“Os romances proporcionam aos leitores alguma coisa para ler. Na melhor das hipóteses, os escritores modificam a forma como os leitores leem. Essa me parece ser a única expectativa realista. Também me parece ser suficiente. Ler romances é um prazer profundo e singular, uma atividade humana absorvente e misteriosa -- que, como o sexo, não exige nenhuma justificativa moral ou política.” Além disso, ele não acreditava que seus livros tivessem mudado alguma coisa na cultura americana, de modo algum, como já foi dito no início.
Vale a pena transcrever também a última pergunta do entrevistador e a resposta de Roth, claro: “Como você se descreveria? O que acha que é, em comparação com seus protagonistas, que atravessam vívidos processos de transformação?” E Roth: “Sou como alguém que está tentando vividamente se transformar num de meus protagonistas em vívido processo de transformação. Sou bem parecido com quem passa o dia inteiro escrevendo.” É isso, então. De minha parte quero me transformar num eterno leitor e releitor (existe isso?) de Philip Roth.