Júlio Verne e o futuro de Paris
JÚLIO VERNE E O FUTURO DE PARIS
Miguel Carqueija
Resenha do romance de ficção científica “Paris no Século XX’, de Júlio Verne. Editora Ática, São Paulo-SP, 1995. Título original francês: “Paris au Xxe. Siècle”, Hachette Livre, França, 1994. Tradução: Heloísa Jardim. Preâmbulo: Verónique Bedin. Prefácio: Piero Gondolo della Riva.
Para os fãs de Júlio Verne foi sem dúvida uma grata surpresa a descoberta deste romance inédito na década de 1980, o manuscrito esquecido no cofre do filho do escritor. Efetivamente o título era conhecido: Michel Verne fizera publicar em 1905, pouco após a morte de seu pai ocorrida em 24 de março, a lista de inéditos.
Obra já existente em 1863, havia sido recusada por Hetzel, o famoso editor que deu tanto apoio ao “Pai da Ficção Científica”. Hetzel não gostou de algumas particularidades dessa obra e explicou sua discordância numa carta a Verne e em anotações na margem do manuscrito. Referindo-se ao protagonista — aliás xará do filho do autor — Hetzel colocou: “Esse seu Michel é um pavão com os seus versos. Será que não dá para ele carregar pacotes e continuar poeta?” E também: “Seu Michel é um pedante; os outros não têm graça e muitas vezes são desagradáveis”.
Realmente o Michel do romance é um elemento pouco prático, que esquece ter de ganhar a vida, independente de ser ou não amante da poesia. Daí a dificuldade que ele tem em qualquer emprego.
A história é uma distopia onde Verne se permite falar de coisas ausentes na maioria de seus livros, dirigidos ao público infanto-juvenil: é surpreendente encontrar a palavra “estupro”, mesmo sendo apenas referente a uma peça teatral.
O mundo da Paris de 1960, como eu disse, é distópico. Em Paris, com o avanço da tecnologia de transporte e outras, tudo funciona direitinho; em compensação é uma civilização sem alma, onde o mecanicismo impera sobre toda a existência. É um mundo de dinheiro e mecânica.
Essa obsessão contamina até a poesia. Entre as obras fictícias aqui citadas temos as “Harmonias elétricas”, as “Meditações sobre o oxigênio”, o “Paralelograma poético” e as “Odes descarbonatadas”. Numa grande livraria Victor Hugo, Balzac e outros gigantes são desconhecidos. Filho de um poeta (um dos últimos verdadeiros) desconhecido, Michel se desespera em encontrar a verdadeira literatura. Do que lhe restou da família, não encontra apoio ou compreensão.
O mundo aí imaginado é asséptico: trens automatizados, automóveis silenciosos e iluminação elétrica com “fulgor comparável ao do sol”. O que falta é alma.
Michel, porém, é um personagem decepcionante, que parece incapaz de encarar os problemas e, à beira da miséria, apaixona-se por uma garota de 15 anos — ele tem 19 — mas não consegue enfrentar a situação, mesmo quando a Europa é atingida por tremenda onda de frio.
“Michel sofreu cruelmente: não tinha lareira e o combustível estava pela hora da morte. Não tinha como aquecer-se.”
Passou a se alimentar de “queijo de batata” (sic), depois pão de bolota de carvalho, e depois do que mais barato havia, um pão feito à base de carvão (!).
A sua paixão por Lucy, filha do Professor Richelot, era mirabolante:
“Como ele a amava! E, é preciso confessá-lo, como se sentia amado! Aquele amor lhe enchia a existência; ele não compreendia que alguém pudesse necessitar de alguma outra coisa para viver.
E no entanto seus recursos iam minguando, mas ele nem pensava no assunto.”
Creio que essa insensatez irritou Hetzel.
Atípica entre as obras de Verne, esta não tem final feliz e caminha para o desfecho trágico e patético.
Um problema que eu particularmente noto é que Verne embora à frente de seu tempo, não enxerga a emancipação feminina: em 1960, naquela Paris futurista parece que só os homens trabalham. E no entanto no século 19 já existiam muitas mulheres trabalhando fora.
Quanto à grande lista de escritores do século 19, é estranho que Verne cite George Sand como se fosse homem, quando se trata do pseudônimo masculino de Aurore Dupin. Em todo o caso, porém, sempre vale a pena ler Júlio Verne; e aqui encontramos forte sátira à mecanização da sociedade.
Rio de Janeiro, 9 de fevereiro de 2023.