As Aventuras de Tintim, repórter do Petit Vingtième, no país dos sovietes (HQ) - de Hergé.
É esta a primeira história, que eu li, da famosa criatura saída da imaginação de Hergé, Tintim, sempre a escudá-lo o simpático Milu. Diferente dos igualmente famosos, cativantes, amáveis e divertidos Calvin e Haroldo, que vivem em pé de guerra, Tintim e Milu são amicíssimos tais quais Castor e Pólux.
É a história de 1.929, publicada em tiras, no suplemento infantil do Vingtième Siècle, e reunido em livro. Reflete o tom político então vigente, a União Soviética, após a Revolução Comunista de 1.917, a ludibriar com a sua bem-sucedida propaganda, sedutora, à qual o quadrinho que empresta seu nome à esta resenha dedica algumas cenas, o mundo, que se deixa engabelar, por ingenuidade, por comodismo, ou por cumplicidade, voluntária, ou involuntária. Corajoso foi Hergé, que, não se intimidando diante da boa imagem que o governo soviético da União Soviética aos povos do mundo vendia do regime bolchevique, ousou dar à luz, e num suplemento infantil de um famoso jornal, uma obra que, unindo humor à crítica política, simultaneamente simples e complexa, aparentemente despretensiosa, inocente, de aventuras do início ao fim, o protagonista e seu eterno coadjuvante, seu braço-direito de quatro patas, a empreenderem façanhas dignas dos heróis e dos super-heróis, denuncia os crimes dos comunistas.
À Rússia o Petit Vingième envia Tintim. Embarcam num comboio Tintim e Milu. E tão logo nele embarcam, são alvos de um atentado à bomba, que pulveriza, diremos, usando uma hipérbole, o comboio, enquanto o herói, que se revela, no decorrer de seu périplo homérico, dotado de poderes dignos dos semideuses olímpicos, e seu cachorrinho de estimação saem ilesos da trágica aventura, que resultou no desaparecimento (eufemismo para "morte") de 218 pessoas. E chegam a Berlim. E é Tintim acusado de explodir o comboio. Ele defende-se: alega inocência. Em vão. É preso. Seu inseparável cãozinho sempre ao seu lado. Escapam da prisão o herói e seu anjo da guarda, que o livra de apuros em incontáveis ocasiões. E participam de uma perseguição, soviéticos no encalço deles. Faz-se Tintim de morto. E num carro da polícia, em fuga, de um avião jogam-lhe bomba, que lhe destrói a metade traseira do carro. E colide com a locomotiva de um trem. É estraçalhado o carro. E a tragédia não se consuma: apesar da violência do acidente, Tintim e Milu da adversidade retiram-se incólumes, o cão coberto por espessa camada de carvão em pó, que o apretejara. E um agente da Tcheka atenta contra a vida do herói, pondo-lhe à frente uma casca de banana, para que ele inadvertidamente a pisasse, escorregasse, vindo a morrer, acidentalmente, assim que, sob a irresistível força da gravidade, atingisse o chão. Debalde a diabólica artimanha do crudelíssimo agente soviético, que em outras ocasiões atenta contra a vida do heróico belga.
Depois de conduzir, sobre os trilhos da via férrea, um carro mecânico, e, na sequência, dentre outros episódios, reconstituí-lo, aperfeiçoando-o, com peças que encontrara em um ferro-velho, e fingir-se de morto, e lutar contra um soviéte e dar-lhe uma sova, e vestir-se de fantasma, para assustar os bolcheviques que lhe haviam invadido o quarto em que se hospedara, e cair no esgoto, constipar-se, e com um espirro arrancar da parede a grade que o prendia naquele território fétido, e ser preso, e pilotar um barco, a persegui-lo inimigos, que lhe afundam a embarcação, e ser preso, e lutar contra torturadores chineses, fugir da prisão, e ir a Moscou, e alistar-se numa expedição às gulags, e ser condenado à morte por fuzilmento, e fingir-se de morto, e ser soterrado por neve, e ser atacado por um urso, contra o qual se envolve numa luta corpo-a-corpo, e ser capturado pelos soviéticos, e chegar ao esconderijo onde havia tesouros roubados ao povo russo por Lenine, Trotski e Estaline, e pilotar um avião, e ter o avião atingido por um raio, e ser aclamado vencedor da primeira etapa do Raid Pólo Sul - Pólo Norte, e em comemoração festiva embriagar-se, brigar com alemães, ser preso, e prender um bolchevique que pretendia explodir capitais européias, e ganhar uma recompensa de 20.000 Marcos, regressa, enfim, à sua terra, Bruxelas, o ponto de partida da sua extraordinária e fabulosa odisséia.
Cá entre nós: em poucas horas, Tintim, o amado Tintim, e o seu companheiro de todas as horas, Milu, realizam façanhas que superam as de Hércules, as de Aladin, as de Robinson Crusoé, as de Gulliver. Bater-se com um urso que se embriagara com uma boa dose de vodka e derrotá-lo não é para qualquer um; forçar um homem, que lhe corria no encalço, a encher o pneu do carro acidentado como ele o fez ninguém jamais conseguiu; cortar, em escasso tempo, uma árvore gigantesca, e dela tirar, esculpindo-a com um canivete, uma hélice para que pudesse, acoplando-a ao avião, abatido, mas ainda com a potência de alçar vôo e percorrer longas distâncias, apenas ele foi capaz. E o que podemos falar de Milu, seu eterno, leal e corajoso amigo?! Ora, ele o salvou nos momentos mais perigosos, mais sensíveis. Até fantasiar-se de tigre, fantasiou-se, para salvar Tintim. E enfrentou um tigre; e afugentou-o, reduzindo-o, ao latir, a um gatinho inofensivo. E não se acanhou quando o converteram em alvo de gargalhadas bodes, patos, vacas e outras criaturas de quatro e de duas patas.
Há nas pouco mais de cem páginas desta obra quase centenária, centenária e jovial e espirituosa, cenas hilárias e de puro e salutar nonsense. Os disparates são divertidíssimos. O périplo do herói belga e de seu amável cãozinho não é tão disparatado quanto as aventuras do Barão de Munchäusen, mas é igualmente divertido. É Tintim um portento de força, dir-se-ia a versão maculina de Píppi Meia-longa. Até moer de pancadas um urso, moeu. E Milu é um observados perspicaz do comportamento de Tintim e do de outros personagens, sempre atento, e desconfiado, a ler nas pessoas as intenções delas, e antecipando-às ações dos inimigos de Tintim, prejudicá-los, favorecendo-o, protegendo-o, sempre que possível, nem sempre evitando que ele se ponha em apuros.
A ingenuidade do tom da aventura de Tintim é aparente, contrasta com o teor político, diluído no mar de humor e aventura. Hergé, com sensibilidade cativante, e surpreendente, com discrição, comedimento, e crueza, denuncia os crimes do governo soviético em algumas cenas: o cenário, montado para vender ao Ocidente imagem favorável do regime comunista; as eleições, numa votação coletiva, os cidadãos, sob a mira de armas-de-fogo, obrigados a votar nos candidatos que o Partido indica; a distribuição de alimentos, ração diária que mal e mal dá para a subsistência, alimentos que até os porcos rejeitam, e que apenas os cidadãos que declaram juras de amor à ideologia comunista recebem.
É esta aventura de Tintim um passatempo, e uma obra política. A ficção não eclipsa a realidade, que é apresentada, embora com crueza, com traços atenuados num panorama cômico, disparatado, animado com personagens hiperbólicos, os episódios a se desenrolarem numa sequência estonteantemente divertida. Não tem a obra de Hergé o tom fatalista, pessimista, derrotista, apocalíptico, comum a inúmeros autores realistas. Não é obra de um homem desesperançado diante do horror que o mundo, indiferente a ele, lhe mostra.
É do Tintim esta a primeira história que li. E não será a última.