Gente independente - Halldór Laxness
Tema mais importante deste romance é a independência e o preço que um homem tem de pagar para conquistá-la e mantê-la
Halldór Laxness - Gente independente, São Paulo, editora Globo, 2004
Gente Independente, do islandês Halldór Laxness (1902-1998), Prêmio Nobel de Literatura em 1955, é um calhamaço de quase 680 páginas, editado pela Globo em 2004 e que já merecia uma nova edição. Pois nesta data (22/04/2023) os exemplares restantes ou aqueles poucos vendidos em sebos, por serem escassos, estão com preços excepcionalmente elevados. De todo modo, se você verificar o início da sinopse do livro no site da Amazon (que foi onde comprei meu exemplar) lerá que
“Gente Independente conta a saga de Gudhbjartur Jonsson, camponês que, após trabalhar dezoito anos para o intendente de Myri, consegue dar entrada na compra de seu próprio terreno e se livra da servidão, tornando-se proprietário da Casa Estival.” O que seria um homem independente para Jonsson? Aquele que se torna o dono da terra em que trabalha, e através da obstinação e do orgulho de possuí-la consegue superar todas as adversidades que encontrará pelo caminho. Uma delas será a geografia inóspita da região em que se situa a Casa Estival (ou casa de verão), em grande parte um terreno montanhoso ou coberto por charnecas.
Outras adversidades aparecerão; elas não serão poucas e o livro todo nos conta, através de pequenas histórias ou episódios, a batalha de Gudhbjartur Jonsson - que a maior parte do tempo é chamado de Bjartur, apelido que é parte de seu nome mesmo - para se manter um homem independente, auto-suficiente em sua terra. Ele luta bravamente para permanecer livre de dívidas e perseguições, sobreviver ao clima gelado da região e combater o medo que pessoas de sua família, apesar de cristãos, manifestam contra lendas e assombrações, como Kólumkilli, feiticeiro de grande reputação e líder dos irlandeses que conquistaram a região no passado, e de Gunnvör, mulher-vampira que ali morara anos antes da construção da Casa Estival.
Agora proprietário dessa pequena fazenda ou sítio, onde a principal atividade econômica é a criação de ovelhas, que lhe fornece lã, leite e eventualmente carne - ou então os animais são vendidos para compra de outros produtos ou pagar suas dívidas -, Bjartur nos é apresentado como um homem cheio de defeitos. Ele é rude, machista, teimoso, egoísta, antipático e cruel, ao mesmo tempo em que tem algumas poucas qualidades: é sincero, fiel, honesto; por vezes é mesmo ingênuo até quando parece estar sendo esperto ou fazendo aquilo que pensa ser a coisa certa mas não é.
A história de Bjartur é mesclada com a da própria Islândia, país de forte tradição oral, com suas sagas, lendas e folclore, e compreende os anos finais do século XIX e as primeiras décadas do século XX, incluindo aí a Primeira Guerra Mundial. A Islândia, com sua população miserável e uma economia baseada quase que exclusivamente na agricultura e na criação de ovelhas, se beneficiou durante a guerra no exterior, que favoreceu o progresso e o desenvolvimento do país, fornecedor de alimentos e matérias-primas para as nações envolvidas na luta.
Antes disso, ainda no século XIX, acompanhamos o curto espaço de tempo em que Bjartur conviveu com a primeira esposa, Rósa, que se supõe já estar grávida de outro homem antes do casamento, e que morre durante o parto. Como homem independente, ele cria a filha dela sozinho, Ásta Sóllilja, com quem manterá uma ligação duradoura, mesmo quando separados mais à frente. Depois Bjartur se casa novamente; a ação dá um salto de mais de uma dezena de anos.
A segunda esposa, Finna, um tanto doente, gera vários filhos quase todos nascidos mortos, mas uns poucos sobrevivem, três meninos, Helgi, Gvendur e o pequeno Nonni, extremamente apegado à avó Hallbera, que veio morar ali com a filha quando de seu casamento com Bjartur. Mais à frente Helgi desaparece numa nevasca (ou se suicida, não fica claro o que aconteceu), Nonni quando cresce um pouco vai para a América viver com um tio e somente Gvendur permanece na fazenda depois de uma tentativa fracassada de também ir para a América.
No meio disso tudo conhecemos os hábitos daqueles pobres islandeses de então. A comida é pouco e pouquíssimo variada, mesmo para as ovelhas, que estão quase sempre doentes. Para os humanos um certo mingau de aveia, acompanhado de peixe seco, parece ser o prato diário de todos. Adoravam café (não ficamos sabendo se é café mesmo ou uma bebida preparada a partir de outras plantas), servir café para um visitante era uma obrigação e uma honra e eles tomavam dezenas de xícaras, também adoravam açúcar, artigo raro e caro; raramente comiam carne das próprias ovelhas, o que era um luxo. Durante uns tempos a família teve uma vaca, que prenhe gerou um novilho, cruelmente morto por Bjartur para vender sua carne e ossos. Finna ficou desesperada e isso prejudicou ainda mais sua frágil saúde...
Curiosamente, todos amavam poesia – poetas e poetisas eram pessoas altamente consideradas -, principalmente aqueles poemas que traziam ecos das sagas medievais islandesas. A narrativa toda tem trechos que Laxness procura preencher com certo toque poético. O próprio Bjartur compõe versos, o que fica parecendo um tanto estranho para um homem rude e nem tanto letrado como ele, mas com uma gramática perfeita (é ficção, entendemos). Mesmo Ásta Sóllilja havia aprendido a ler e escrever através dos versos das antigas sagas do país.
Ásta Sóllilja vai protagonizar um episódio que fará com que, mais tarde, seja expulsa por Bjartur da Casa Estival. Com poucas economias para sustentar a família e a propriedade, um dia ele toma a decisão de partir para Vík (que é como os personagens chamam a capital Reykjavík) para trabalhar como mão de obra contratada, mas envia um professor para casa que dará educação às crianças. Ele é doente e também parece viciado em uma droga estimulante, algo assim. Bem ou mal, as crianças aprendem algo mais sobre o mundo, história e geografia, conhecem alguns animais inexistentes na Islândia etc. Mas uma noite o professor estupra Ásta, que engravida e em seguida é expulsa pelo padrasto.
Da mesma forma que o clima islandês, a maior parte do tempo o livro é uma narrativa um tanto fria, sem grandes acontecimentos e até apresenta alguns trechos aborrecidos, como as discussões entre os homens referentes à economia (cooperativas de crédito) e política (socialismo versus capitalismo), mas que são necessárias porque irão influenciar o desenvolvimento da trama até o final. Laxness era um admirador do socialismo, como se sabe através de sua biografia.
Reviravoltas acontecem, principalmente na economia e então Bjartur, que durante a guerra no exterior havia se tornado um homem um tanto abastado que depois até inicia a construção de uma sonhada casa de alvenaria - já que a maior parte da vida viveu em casebres -, não tem mais como pagar seus empréstimos na cooperativa de crédito e sua propriedade é leiloada. Aí caminhamos para o final, querendo saber se ele ainda conseguirá manter sua independência ou se sucumbirá à economia dos novos tempos e se tornará um trabalhador braçal, empregado dos outros, como havia sido durante muito tempo no passado.