Infância - Graciliano Ramos
Infância e início da puberdade de um sofrido menino do sertão alagoano que mal sabia ler e escrever...
Graciliano Ramos - Infância, RJ, editora Record, 1975
No final de Infância (1945) temos Octavio de Faria (1908-1980), jornalista, crítico e escritor carioca, registrando suas impressões sobre o livro num pequeno ensaio intitulado Graciliano Ramos e o Sentido do Humano. Ele serve como posfácio a essa edição da Record de 1975, que traz ainda belas ilustrações do artista plástico Darcy Penteado (1926-1987). Para Faria, se Infância parece ser o livro mais importante de Graciliano Ramos (1892-1953), seu melhor romance seria mesmo Angústia (1936). Ele analisa esses dois livros do autor alagoano – e outros, mais brevemente –, todos fundamentais para quem deseja conhecer o melhor da literatura brasileira do século XX e de sempre.
Para se entender plenamente o autor de Vidas Secas (1938), sua obra mais conhecida e admirada, bem como as demais que escreveu, Faria afirma que é necessário ler Angústia. Não à toa seu ensaio é iniciado com uma citação de Dostoievski, "Mas, isso provém do fato de eu não ter estima por mim. Pode, porém, um homem que se conhece a si mesmo, estimar-se, mesmo um pouco que seja?" Angustiados, humilhados e ofendidos, como são muitos personagens de Dostoievski, também podemos encontrar essas criaturas nas obras de Graciliano Ramos. Apesar das distâncias geográficas, culturais e temporais o russo e o brasileiro têm muito em comum, sem dúvida.
Infância é uma releitura: não me lembrava de muita coisa da primeira vez que tive o livro em mãos, vários anos atrás, apenas genericamente da história. Achei ótimo então, mas agora o livro me pareceu profundamente triste e seco, como seco era (e continua sendo em certos lugares) o nordeste de Graciliano, uma narrativa com muitas passagens até mesmo sombrias por conta do tratamento que as crianças de sua época recebiam dos adultos, com muito pouco ou nenhum carinho de seus pais. Em vez de amor, autoritarismo e medo.
O próprio autor escreve: “Medo. Foi o medo que me orientou nos primeiros anos, pavor.” Infância é, pois, um quadro extremamente amargo e sofrido de memórias vividas (e outras possivelmente inventadas) pelo adulto que um dia foi o menino Graciliano. Além da história do menino temos outros personagens curiosos de sua infância (os pais, seus professores, parentes e amigos da família, vizinhos, visitantes etc.), todos vivendo a maior parte do tempo num cenário de seca, longe de tudo, com um mínimo de recursos para a sobrevivência, muitas vezes migrando em busca de uma vida mais digna, de menos sofrimentos. Graciliano também toca na questão dos negros, sua deplorável situação econômica e social logo após a abolição da escravatura por aqui. Se a situação de uma criança branca era complicada, a de uma negra era muito mais.
Isso tudo não impede, claro, que o livro tenha alguns momentos engraçados, especialmente relacionados ao tempo em que o menino passou na escola. Como no trecho em que somos apresentados a Terteão. E quem era esse personagem, essa pessoa? Com esse nome, Terteão era certamente um homem. Mas um homem desconhecido, que o menino tinha curiosidade de descobrir quem era. Pois nem mesmo Mocinha, sua irmã, mais velha do que ele, sabia de quem se tratava. Isso tudo porque lá pelas tantas páginas de Infância, Graciliano fala de sua dificuldade de ler: estava por volta dos oito, nove anos. Ao tratar de sua vida escolar, ele nos entrega uma passagem bem interessante do livro. Vale a pena transcrever algumas linhas aqui:
“Eu não lia direito, mas, arfando penosamente, conseguia mastigar os conceitos sisudos: "A preguiça é a chave da pobreza — Quem não ouve conselhos raras vezes acerta — Fala pouco e bem: ter-te-ão por alguém."
“Esse Terteão para mim era um homem (...).
“Mocinha, quem é o Terteão?
“Mocinha estranhou a pergunta. Não havia pensado que Terteão fosse homem. Talvez fosse. (,,,)
“Mocinha confessou honestamente que não conhecia Terteão.”
O menino lia porém não entendia o que significavam as palavras que tinha pela frente, como no caso desse aforismo, "Fala pouco e bem: ter-te-ão por alguém.", em que ele confundia o som, a conjugação pronominal do verbo ter com o nome de uma pessoa, um homem, Terteão. Está explicado. Depois acompanhamos, sempre com muito interesse, sua crescente relação com os livros, autores, histórias etc. Haveria muita coisa mais para se registrar sobre Infância, mas o melhor mesmo é deixar essas linhas de lado e ler (ou reler) o livro de Graciliano e o ensaio de Octavio de Faria. E depois ler (ou reler) Angústia, Vidas Secas, São Bernardo, Caetés, Memórias do Cárcere...