Como vivem as Marias de hoje e de sempre
Resenha do meu livro "Como morrem as Marias"
Daiane Andrade
Mestra em Letras
Professora (IFNMG - Campus Salinas)
A ficção literária, entre tantas funções, também é documento histórico. Quantas obras literárias já nos serviram de painel para vislumbrarmos as relações sociais, hábitos e dilemas de uma época? Dessa forma, uma das maneiras de refletirmos sobre as mudanças e também perpetuações dos papéis sociais das mulheres é embrenharmo-nos na leitura de textos literários dos mais variados gêneros.
O livro Como morrem as Marias, da autora Cyntia Pinheiro, traz entre a tragédia, o riso e a trivialidade de rotinas aparentemente normais para muitas mulheres, contemplações sobre o feminino por meio de personagens que se apresentam diante do leitor de forma quase caricatural. Mas muito se engana quem observar a obra somente pela leveza do humor que surge fácil, em veredas por vezes improváveis, ou levado apenas pelo aspecto mórbido ligado ao fim de todas as Marias.
Cyntia Cybelle Pinheiro Barbosa é natural de Taiobeiras-Mg, mas vive em Montes Claros há muitos anos. É uma artista multifacetada: além da escrita de poemas, contos, crônicas, romances, já fez trabalhos como libretista, ghostwritter e também como ilustradora. Muito atuante nas redes sociais, onde é possível conhecer um pouco de seu trabalho como autora e também como artista plástica, Cyntia também é professora de música e história da música, no Conservatório Estadual de Música Lorenzo Fernandes, destacando-se também como produtora cultural.
Como morrem as Marias, lançado em 2021 pela editora Uiclap, traz contos curtos, uns leves, outros incisivos, marcados por doses desiguais de drama e comédia. São 60 Marias, duas delas com suas histórias narradas por meio de poemas. São tipos comuns com toda a sua simplicidade e também nobreza. Na impossibilidade de nomear tantas mulheres, tão iguais nas suas histórias, mas também únicas nas suas idiossincrasias, todas são Marias, com trajetórias semelhantes às verdades de muitas mulheres. Nos contos aparece a história de nossas bisavós, mães, vizinhas, amigas, da mulher do noticiário, da balconista da floricultura. Todas com seus sonhos, rotinas e mortes improváveis ou anunciadas.
As mortes dessas Marias sempre são emblemáticas, desde das mais comuns como em “Maria ginecologista”, “Maria lavadeira”, “Maria do Campo”, “Maria do Sopão”; passando pelas Marias artistas, com mortes que não deixam de ter seu glamour e espetáculo como em “Maria do Circo”, “Maria Atriz”, “Maria Cantora” e “Maria Bailarina”; até as mortes repletas de estranhamentos e ironias do destino como em “Maria vai com as outras” que sempre negou suas origens, mas teve sua classe social revelada pelas manchetes do jornal ao ser assassinada ao lado do barraco em que vivia na favela. O Momento final contradiz ou confirma os valores perpetuados por tais protagonistas em vida.
Essas mortes falam mais de vida, com suas ironias e artimanhas. Ao narrar a morte dessas personagens advindas da ficção, mas tão comuns em histórias reais, os contos dizem muito sobre como vivem essas mulheres. Temas recorrentes na vida das Marias de ontem e de hoje ecoam pela obra. Aparece o suicídio (“Maria do Coach” e “Maria Chuteira”), a vivência da sexualidade, com a busca pelo prazer (“Maria do Telemarketing”, “Maria da Orquestra” e “Maria Esposa”) e também retratos mais contemporâneos sobre as discussões de gênero e sexualidade (“Maria João” e “Maria Trans”).
Entre sonhos, trabalhos e temperamentos variados, a manutenção de dramas arraigados na nossa sociedade como o machismo e a violência doméstica (“Maria Aeromoça”, “Maria Arquiteta” e “Maria Mãe”) e a miséria (“Maria Menina” e “Maria da Favela”) nos lembram do quanto é preciso não se acostumar com essas narrativas. É preciso questionar como morrem as Marias e lutar para uma sociedade com mais equidade, pois se há imagens de Marias que ressignificam o lugar posto para mulher como em “Maria Gamer” “Maria Prefeita” e “Maria Caminhoneira”, também há a repetição de vários estereótipos como o da mulher amargurada por não ter um homem em “Maria Virtude”.
O livro tem a capacidade de nos mostrar como as narrativas pessoais são valiosas, mesmo aquelas com roteiros corriqueiros e clichês. Cada personagem traz o mote para muitas abordagens e, por isso, às vezes temos a impressão que as Marias nos foram apresentadas de forma muito rápida ou faltou verossimilhança na sua morte. Entretanto, as narrativas fazem jus ao melhor que há no gênero conto: sua concisão. Muitas dessas Marias mereceriam até mesmo serem pormenorizadas num romance, mas são reais demais e preferem se relevar nesses retratos curtos, mas não simples. Tal qual um caleidoscópio, cada Maria reflete a própria imagem e outras tantas diante de nossos olhos incrédulos e por vezes acostumados a caracterizações superficiais.
PINHEIRO, Cyntia. Como morrem as Marias. São Paulo: Editora Uiclap, 2021.