Pequena resenha sobre o conto "AS DESAVENÇAS DE JOÃO PORAQUÊ" do escritor paraense IVANILDO ALVES. Membro da Academia Paraense de Letras, que me honrou, prefaciando o meu livro DIZERUDITO.
A PROPÓSITO DAS DESAVENÇAS DE JOÃO PORAQUÊ (RESENHA)
por Edmir Carvalho Bezerra
Ao nos debruçarmos sobre a leitura de um conto, não raro nos deparamos, logo depois de não mais que vinte minutos, com o seu fim. Leitura rápida, fácil, prazerosa. Mas para chegar a essa curta história o escritor levara também quinze ou vinte minutos? Uma hora? Uma semana? Meses? O relâmpago de um conto é sua aparente fragilidade. O autor de “O livro da Selva”, Rudyard Kipling disse bem que “Quanto mais curta é a história, mais longo é o seu rascunho”. Machado de Assis declarou “É gênero difícil a despeito de sua aparente facilidade” O conto é a narrativa curta, para ser lida de um golpe. O contista russo Anton Tchekhov, afirmou em relação ao conto “Quanto mais objetivo, mais forte será o efeito”.
Narrativa de personagens poucas, sem penduricalhos, sem enfeites, sem desnecessidades. Para a meia hora de leitura objetiva e prazerosa, muitas vezes o contista rascunha pilhas de laudas para depois ir enxugando até chegar ao zap-trap, a unhada arisca do gato, ao susto, ao choque. E por falar em choque. Sento quinze minutos para ler “As Desavenças de João Poraquê” do contista Ivanildo Alves. Leitura rápida, frágil, fácil, objetiva, simples. Mas sim! Facilidade, armadilha para o leitor ingênuo, a descarga elétrica potente para o avisado.
As desavenças de João Poraquê é a confirmação explicita do nosso Machado, de Kipling e de Tchekhov. Uma aparente facilidade, um longo rascunho e o forte efeito. Mas é o longo rascunho que perseguiremos, porque os outros dois: facilidade e efeito são aparentes e sentidos. O rascunho não, este está subliminarmente entranhado nos prazerosos quinze minutos de leitura, parece que Ivanildo Alves escreveu um romance e o comprimiu para ser engolido como pílula, com um gole d’água. Vupt, a devoração das palavras, das imagens. O contista é um roubador de fôlegos.
Perseguir o rascunho é trabalho árduo, daí o gênero difícil. É preciso dissecar a narrativa naquilo que ela tem de superfície, de visível. Mas, sobretudo, é imprescindível mergulhar nas suas entrelinhas, nas suas veias, buscando o que foi narrado sem palavras e que está na caverna do conto. Sim todo conto esconde uma caverna dentro de si. Na superfície estão apenas pequenas luzes que conduzem o leitor atento ao seu interior. Vamos, pois seguir as luzes das Desavenças de João Poraquê.
Dois personagens íntimos e ao mesmo tempo antagônicos: Severiana e João, vivendo numa paisagem cheia de feridas e cicatrizes a cada palavra, sem deixar fôlego para o leitor se condoer. Mas o sentido implícito traz feridas ainda mais abertas, expostas à hostilidade do mundo que desengana a vida e banaliza a violência.
O contista, muitas vezes toma o pulso da história, noutras solta as rédeas e parece dizer ao personagem: toma minhas mãos e faz em letras os teus caminhos. Aqui o escritor, quando parece querer conduzir a narrativa, insinuando alguns detalhes, as personagens se impõem. O que parece fragilidade em Severiana é fortaleza, o embirramento do menino é sua fraqueza. A narração solta salta aos olhos, aponta o dedo no nariz do leitor. Riscando com facas e gargalos a sua face, diz: este é o puro retrato de um cotidiano vivo e perturbador.
Severi-Ana é o aglutino. Ana, ‘a cheia de graça’, a benéfica’, diz o nome do hebraico. Ana é avó de Jesus, o cordeiro imolado, aquele que tinha um carinho especial por João, seu discípulo muito amado, porque ‘jáve é misericordioso’. Dito em hebraico. Quis o destino que a vida fosse severa com Ana.
O menino órfão e a viúva estão nas escrituras no livro do Eclesiástico ‘ Não despreza a oração do órfão, nem os gemidos da viúva. As lágrimas da viúva não correm pela sua face, e seu grito não atinge aquele que as faz derramar?’ Os dois são a personificação da pobreza, da miséria, representação dos que são abandonados à própria sorte. Aqui o contista usa o recurso literário chamado merisma (alguém fala as partes para significar o objeto inteiro). Próprio do conto, a narrativa curta é rica de merismas.
Severiana, a lavadeira, viúva, envelhecida, doente a lavar, passar e carregar trouxas de roupas. Uma metaforização rica. O pobre lava a sujeira do mundo, esse mundo representado numa trouxa de roupa, tantas vezes Ana lava, tantas mais o mundo suja.
A misericórdia carregava consigo a severidade, e assim ser Severiana é carregar os contraditórios rumos da vida. Severiana tomba ‘a calçada, as árvores, os ônibus, os transeuntes. Tudo parecia distante’ a vista escurece, olhando o mundo que a excluiu. ‘... Protegendo as roupas lavadas que iria entregar naquela tarde” Neste instante a graça de Ana protege a trouxa de roupas, protege o mundo das impurezas, enquanto tais impurezas lhe são severas, roubando-lhe a vida. Afaga a cabeça do neto, como quem num gesto derradeiro diz: meu filho muito amado. Talvez o último suspiro de Severiana buscasse sugar todo o oxigênio gris para deixar o ar límpido como as roupas no quaradouro.
Vidas desprezadas e miúdas carregam a solidariedade dentro de si, um negro e um homem que talvez por sua fragilidade aparente se chama carapanã socorrem o órfão e a viúva. Os demais são passantes, abrem os olhos só por curiosidade.
A redoma de vidro da cidade deixou de fora João, não havia outro caminho, uniu-se aos que juntam migalhas dos ricos epulões. A vida de João foi se apequenando. Neto de Arnaldo, filho de Arnaldinho, torna-se amigo de indigentes, ele mesmo, indigente deixa de ser João, se junta aos sem nome, Nego Tetê, Pitico, Gato, Braço de Boneca. Pulsa forte nas linhas invisíveis da história que sua morte ocorrera no mesmo dia da culminância da severidade do destino com a benéfica Ana.
Sem descartar pormenores relevantes, o poraquê é mais forte, é eletrizante, devorou qualquer vestígio do menino emperreado. Agora João dava socos e quebrava mandíbulas até do vento. Quem já morreu perde o medo. Foi a zelosa Magali sua margarida, por que Magali significa ‘das margaridas’, quem fez florescer veias elétricas em João. A eletricidade, o choque, uma veia no pulso, na verdade, a indignação à flor da pele daqueles inquietos e vítimas das feridas da humanidade.
Eis aí teu filho, filho eis aí tua mãe, leitores, eis aí o mundo que (des)construímos.
O menino birrento, o adolescente infrator, o homem indigente, o amante elétrico, deitou-se para morrer sua segunda morte. Foi pequeno, foi frágil, foi gigante e temido, foi assim.
Aliás, na vida não é fácil ser João, ainda que ‘na escuridão de seus olhos’, a misericórdia estenda a mão para afagar sua cabeça. E a mão que afaga é a de Ana, mas também a da severidade, assim Severiana é figura de uma vida Severina.
A mão afaga, a mão a faca, afaga a cabeça, a faca no peito. Belíssimo. O afago sobre a razão e a lâmina cortando o coração. Um gesto humaniza, o outro desumaniza, um ergue o outro derruba. A esperança frágil tomba no acaso, como cena comum. Odete é o corte da tênue linha que empurra homens, meninos, meninas para baixo da linha da miséria onde só há os ‘joão ninguém’.
A mão com a faca não sabia que seu gesto era apenas uma reação do choque do poraquê. Não foi ódio de João, não foi ciúmes, não era amor. Era só mais uma cena comum do jornal que alimenta os homens sem alma. Certamente alguém, tendo lido o periódico, falou: Graças a Deus menos um.
Talvez por isso o poraquê, lentamente abana a água e espreita os desavisados para soltar sua carga de indignação. E é preciso ter cuidado, pois há um poraquê em cada esquina da cidade.
O conto é isso e pode ser muito mais. Perseguir seu rascunho, penetrar a caverna que ele esconde é missão quase impossível. Há mais mistérios em um conto do que em ‘Cem anos de Solidão’.
“As Desavenças de João Poraquê” participou recentemente de um concurso de contos que não aconteceu. Os jurados chocados não premiaram nem o segundo, nem o terceiro colocado. João continua a fazer desavenças.
A PROPÓSITO DAS DESAVENÇAS DE JOÃO PORAQUÊ (RESENHA)
por Edmir Carvalho Bezerra
Ao nos debruçarmos sobre a leitura de um conto, não raro nos deparamos, logo depois de não mais que vinte minutos, com o seu fim. Leitura rápida, fácil, prazerosa. Mas para chegar a essa curta história o escritor levara também quinze ou vinte minutos? Uma hora? Uma semana? Meses? O relâmpago de um conto é sua aparente fragilidade. O autor de “O livro da Selva”, Rudyard Kipling disse bem que “Quanto mais curta é a história, mais longo é o seu rascunho”. Machado de Assis declarou “É gênero difícil a despeito de sua aparente facilidade” O conto é a narrativa curta, para ser lida de um golpe. O contista russo Anton Tchekhov, afirmou em relação ao conto “Quanto mais objetivo, mais forte será o efeito”.
Narrativa de personagens poucas, sem penduricalhos, sem enfeites, sem desnecessidades. Para a meia hora de leitura objetiva e prazerosa, muitas vezes o contista rascunha pilhas de laudas para depois ir enxugando até chegar ao zap-trap, a unhada arisca do gato, ao susto, ao choque. E por falar em choque. Sento quinze minutos para ler “As Desavenças de João Poraquê” do contista Ivanildo Alves. Leitura rápida, frágil, fácil, objetiva, simples. Mas sim! Facilidade, armadilha para o leitor ingênuo, a descarga elétrica potente para o avisado.
As desavenças de João Poraquê é a confirmação explicita do nosso Machado, de Kipling e de Tchekhov. Uma aparente facilidade, um longo rascunho e o forte efeito. Mas é o longo rascunho que perseguiremos, porque os outros dois: facilidade e efeito são aparentes e sentidos. O rascunho não, este está subliminarmente entranhado nos prazerosos quinze minutos de leitura, parece que Ivanildo Alves escreveu um romance e o comprimiu para ser engolido como pílula, com um gole d’água. Vupt, a devoração das palavras, das imagens. O contista é um roubador de fôlegos.
Perseguir o rascunho é trabalho árduo, daí o gênero difícil. É preciso dissecar a narrativa naquilo que ela tem de superfície, de visível. Mas, sobretudo, é imprescindível mergulhar nas suas entrelinhas, nas suas veias, buscando o que foi narrado sem palavras e que está na caverna do conto. Sim todo conto esconde uma caverna dentro de si. Na superfície estão apenas pequenas luzes que conduzem o leitor atento ao seu interior. Vamos, pois seguir as luzes das Desavenças de João Poraquê.
Dois personagens íntimos e ao mesmo tempo antagônicos: Severiana e João, vivendo numa paisagem cheia de feridas e cicatrizes a cada palavra, sem deixar fôlego para o leitor se condoer. Mas o sentido implícito traz feridas ainda mais abertas, expostas à hostilidade do mundo que desengana a vida e banaliza a violência.
O contista, muitas vezes toma o pulso da história, noutras solta as rédeas e parece dizer ao personagem: toma minhas mãos e faz em letras os teus caminhos. Aqui o escritor, quando parece querer conduzir a narrativa, insinuando alguns detalhes, as personagens se impõem. O que parece fragilidade em Severiana é fortaleza, o embirramento do menino é sua fraqueza. A narração solta salta aos olhos, aponta o dedo no nariz do leitor. Riscando com facas e gargalos a sua face, diz: este é o puro retrato de um cotidiano vivo e perturbador.
Severi-Ana é o aglutino. Ana, ‘a cheia de graça’, a benéfica’, diz o nome do hebraico. Ana é avó de Jesus, o cordeiro imolado, aquele que tinha um carinho especial por João, seu discípulo muito amado, porque ‘jáve é misericordioso’. Dito em hebraico. Quis o destino que a vida fosse severa com Ana.
O menino órfão e a viúva estão nas escrituras no livro do Eclesiástico ‘ Não despreza a oração do órfão, nem os gemidos da viúva. As lágrimas da viúva não correm pela sua face, e seu grito não atinge aquele que as faz derramar?’ Os dois são a personificação da pobreza, da miséria, representação dos que são abandonados à própria sorte. Aqui o contista usa o recurso literário chamado merisma (alguém fala as partes para significar o objeto inteiro). Próprio do conto, a narrativa curta é rica de merismas.
Severiana, a lavadeira, viúva, envelhecida, doente a lavar, passar e carregar trouxas de roupas. Uma metaforização rica. O pobre lava a sujeira do mundo, esse mundo representado numa trouxa de roupa, tantas vezes Ana lava, tantas mais o mundo suja.
A misericórdia carregava consigo a severidade, e assim ser Severiana é carregar os contraditórios rumos da vida. Severiana tomba ‘a calçada, as árvores, os ônibus, os transeuntes. Tudo parecia distante’ a vista escurece, olhando o mundo que a excluiu. ‘... Protegendo as roupas lavadas que iria entregar naquela tarde” Neste instante a graça de Ana protege a trouxa de roupas, protege o mundo das impurezas, enquanto tais impurezas lhe são severas, roubando-lhe a vida. Afaga a cabeça do neto, como quem num gesto derradeiro diz: meu filho muito amado. Talvez o último suspiro de Severiana buscasse sugar todo o oxigênio gris para deixar o ar límpido como as roupas no quaradouro.
Vidas desprezadas e miúdas carregam a solidariedade dentro de si, um negro e um homem que talvez por sua fragilidade aparente se chama carapanã socorrem o órfão e a viúva. Os demais são passantes, abrem os olhos só por curiosidade.
A redoma de vidro da cidade deixou de fora João, não havia outro caminho, uniu-se aos que juntam migalhas dos ricos epulões. A vida de João foi se apequenando. Neto de Arnaldo, filho de Arnaldinho, torna-se amigo de indigentes, ele mesmo, indigente deixa de ser João, se junta aos sem nome, Nego Tetê, Pitico, Gato, Braço de Boneca. Pulsa forte nas linhas invisíveis da história que sua morte ocorrera no mesmo dia da culminância da severidade do destino com a benéfica Ana.
Sem descartar pormenores relevantes, o poraquê é mais forte, é eletrizante, devorou qualquer vestígio do menino emperreado. Agora João dava socos e quebrava mandíbulas até do vento. Quem já morreu perde o medo. Foi a zelosa Magali sua margarida, por que Magali significa ‘das margaridas’, quem fez florescer veias elétricas em João. A eletricidade, o choque, uma veia no pulso, na verdade, a indignação à flor da pele daqueles inquietos e vítimas das feridas da humanidade.
Eis aí teu filho, filho eis aí tua mãe, leitores, eis aí o mundo que (des)construímos.
O menino birrento, o adolescente infrator, o homem indigente, o amante elétrico, deitou-se para morrer sua segunda morte. Foi pequeno, foi frágil, foi gigante e temido, foi assim.
Aliás, na vida não é fácil ser João, ainda que ‘na escuridão de seus olhos’, a misericórdia estenda a mão para afagar sua cabeça. E a mão que afaga é a de Ana, mas também a da severidade, assim Severiana é figura de uma vida Severina.
A mão afaga, a mão a faca, afaga a cabeça, a faca no peito. Belíssimo. O afago sobre a razão e a lâmina cortando o coração. Um gesto humaniza, o outro desumaniza, um ergue o outro derruba. A esperança frágil tomba no acaso, como cena comum. Odete é o corte da tênue linha que empurra homens, meninos, meninas para baixo da linha da miséria onde só há os ‘joão ninguém’.
A mão com a faca não sabia que seu gesto era apenas uma reação do choque do poraquê. Não foi ódio de João, não foi ciúmes, não era amor. Era só mais uma cena comum do jornal que alimenta os homens sem alma. Certamente alguém, tendo lido o periódico, falou: Graças a Deus menos um.
Talvez por isso o poraquê, lentamente abana a água e espreita os desavisados para soltar sua carga de indignação. E é preciso ter cuidado, pois há um poraquê em cada esquina da cidade.
O conto é isso e pode ser muito mais. Perseguir seu rascunho, penetrar a caverna que ele esconde é missão quase impossível. Há mais mistérios em um conto do que em ‘Cem anos de Solidão’.
“As Desavenças de João Poraquê” participou recentemente de um concurso de contos que não aconteceu. Os jurados chocados não premiaram nem o segundo, nem o terceiro colocado. João continua a fazer desavenças.