Cá na terra, ou do Além: um olhar sobre “Mil Vezes Te Amarei”, de Patrick Sousa
A despeito das digressões doutrinais que imperam entre espiritismo e catolicismo, muitos autores brasileiros --- especialmente dramaturgos --- souberam aglutinar elementos de uma doutrina à outra em enredos que marcaram época (vide “A Viagem” e “O Profeta”, da saudosa e ínclita Ivani Ribeiro; e “Alma Gêmea”, do genioso Walcyr Carrasco, hoje um medalhão, senão o mais requisitado, da Rede Globo de Televisão). Patrick Sousa não é exceção no trato de seu romance “Mil Vezes Te Amarei”, que veio à luz pela Letras & Versos --- Rio de Janeiro-RJ, em 2021.
A narrativa --- articulada, como gosto de escrever com várias passagens de tempo --- imerge nos perfis de Eduardo e Maria, em São Paulo nos anos de 1930, acoplando-se à saga de Diego e Luísa cem anos mais tarde, desta vez na formosa Thereza Cristina --- como gentilmente, ou não, gosto de chamar a capital piauiense.
Se ater à construção estilística do texto, o linguajar e a psicologia dos personagens demandaria um tempo que iria certamente me repelir, haja vista que não sou linguista ou formado em Letras (como é o caso de Patrick), mas a faceta e bagagem ainda exíguas de antropólogo e historiador me autorizam tecer algumas, e singelas, impressões pontuais.
Deter-me-ei muito mais às questões que dizem respeito ao pouco que sei das intercalações entre espiritismo e catolicismo do que ao enredo em si. Escrever um romance que se achega à literatura espiritualista é sempre um desafio afanoso, tendo em vista que a maioria (senão todos) são entendidos como ditados por espíritos (vide Zíbia Gasparetto com Lucius, além do maior já aclamado no Brasil, Francisco Cândido Xavier). Sem embargo, isso não impossibilita que leigos --- o que não digo que Patrick seja --- o façam a seu modo.
Se todo ponto de vista é a vista de um ponto, Patrick observa do seu lugar social, como diria o padre jesuíta e historiador Michel de Certeau. Decerto que literatura, numa leitura histórico-antropológica, não seria, a meu ver, interessante se não contasse com as chamadas licenças poéticas, sem as quais os textos ficam mecânicos e insossos, ou ainda amarrados a um padrão puramente técnico e/ou científico (o que, em nenhum momento, remove do escritor a responsabilidade de se ater à historicidade da época e local sobre os quais escreve, a despeito da liberdade em criá-los).
Seguindo outro viés, o amor, que é um sentimento nobre, perpassa boa parte da literatura espiritualista a que já tive acesso, e isso não se desassemelha da tentativa de Sousa em costurar um casal que morre (ou, na linguagem espírita, desencarna) e se reencontra, quando da reencarnação. Isso me lembra muito nitidamente as cenas escritas por outra dramaturga celebrada no Brasil, Elizabeth Jhin, especialmente em “Além do Tempo”, trama de 2015, veiculada no horário das seis na Globo.
Os personagens de Aline Morais (Lívia) e Rafael Cardoso (Felipe) caíam, empurrados por obra de Pedro, papel de Emílio Dantas, e Melissa, encarnada por Paola Oliveira, de um penhasco, num agueiro cujo corte de cena os levava, cento e cinquenta anos depois, a uma estação de metrô, onde seus olhares se entrecruzavam.
O ódio, a inveja e o ressentimento podem ser paliados, ao ver dos espíritas, nas vidas futuras, tendo em vista a crença de que não há morte, mas espíritos em curso. O episódio entre Ranya e Luísa, na segunda parte da obra de Patrick, ilustra o sentimento vil e o destino malfadado entre Melissa e Lívia no folhetim de Jhin, e que pôde ser corrigido na segunda fase da novela.
Quanto ao catolicismo, com ênfase no que corresponde à eclesiologia, os pontos mais efusivos são muito mais dos frutos de uma tradição --- convenção coletiva --- do que necessariamente uma crença incontestável. Se considerarmos, pois, que a massa majoritária de católicos o vivem sem tecerem contatos culturais com outras religiões, ou somente doutrinas, certamente não estaremos falando do Brasil.
Patrick é um escritor audaz e não teme as especulações porque acredita na capacidade de criação que os próprios personagens podem oferecer --- não mecanicamente, mas como advento de uma emoção que só quem romanceia entende (os novelistas, também). Chega-se a uma instância em que não somos mais nós que os comandamos, mas eles que nos comandam e, quase que num ultimato, dizem: “é esse o meu destino, talvez ele seja diferente do que você escreveu ou quer escrever para mim”. E está o trunfo de ser um autor/criador.
Outro item destacável trata-se da linha, ou melhor linhas, às quais Patrick, mesmo livre, se aparelha, ao escrever também literatura LGBTQIAP + (na suspeição da sexualidade do filho do prefeito na primeira fase do romance). Se aos antigos gregos, a homoafetividade masculina não fosse motivo de rechaçamento público, a feminina já não contava com a mesma sina. E tocar nesses assuntos, por muito tempo e vigorosamente entendidos como tabu, ou não palatáveis, é hoje salutar enfatizar que isso ainda se inscreve muito numa leitura ocidental das relações culturais humanas. Nós continuamos, ainda que em menor escala, colonizados e ocidentalizados de tal forma que poucos sabem, à exceção de alguns antropólogos, que entre os antigos melaneses, segundo Marilyn Strathern, em “O gênero da dádiva”, os meninos tinham iniciações que envolviam --- que fique bem claro --- hoje se entende por homoafetividade, e que gênero só se dava na relação com o outro, isto é, não havia gênero se não houvesse relação. Assunto para um longo texto.
Entra em cena, por outro lado, no romance de Sousa, a figura do Deus judaico-cristão, que, especialmente para os espíritas, permite que os espíritos se reencarnem e possam resolver problemas das chamadas vidas passadas. O relógio do ciclo reencarnatório conta vinte e duas vidas para cada espírito se encarnar (eu sei que estou na vigésima, talvez por isso algumas características da minha índole a mostrem razoavelmente evoluída no quesito perdão e na esfera generosidade).
“Mil Vezes Te Amarei” beira duas instâncias --- que no entender católico são lugares, não estados ---: céu e inferno. Chico Xavier os considerava --- e piamente acreditava --- como conscienciais: ou seja, já se os vive na carne, na mente, e que o homem tem que pagar pelo que fez, o que não necessariamente se choca, no alinhavar da justiça, para os católicos, mas especialmente no que tange à crença e defesa catequética e taxativa de que só se vive uma vez, e Cristo, tendo morrido pelos pecados da humanidade, já não deixa margem para que os homens/mulheres tenham que pagar em quantas vidas que forem, ou onde quer que seja.
De todo modo, a literatura espiritualista cativou o coração dos brasileiros. E quando chegou às telenovelas --- embora muitas delas não tenham sido compreendidas --- fez um sucesso razoável, para não dizer bem-sucedido no quesito mercadológico. A emoção de se pensar em um encontro/reencontro, nessa terra, entre dois seres que sentem que já se conhecem, numa espécie de contraste ao avesso com a expressão de origem francesa déjà vu, estabelece um canal com leitores e telespectadores que se identificam com os textos, encenados ou não.
Não se trata de uma linguagem fácil, compreensível --- se lida rasamente ---, sem contar as próprias críticas dos médiuns que, não e ao mesmo tempo um pouco, ressaltam seu ego na pretensa ideia de serem escolhidos pelas divindades, para canalizar as mensagens de espíritos do Além, que desejam comunicar-se ou reparar erros de vidas passadas. Por conseguinte também, debruçar-se sobre essa mesma literatura, no eixo analítico, implique na consideração de que há, como nas demais literaturas, um economia em giro, um público específico e uma leva de críticos afiados (até mordazes), prontos para enaltecer ou destroçar os trabalhos impiedosamente.
Se, como encerra o escritor Patrick Sousa, inspirado ou inspirando Luísa: “a morte é o início de uma nova vida”, os contrastes abissais entre espiritismo e catolicismo não assumem a vanguarda da polivalência da literatura e da criatividade em escarafunchar os amplos sentidos e as perenes nuances da vida humana, e cá na terra, esparsas em tantos saberes e em tantas culturas. A recepção da frase musicada de Raul Seixas: “morte, morte, morte, que talvez seja o segredo dessa vida”, que abre uma das biografias de Allan Kardec --- o decodificador da doutrina espírita --- talvez nos sugira uma leitura mil vezes mais apurada de “Mil Vezes Te Amarei” porque nós somos e estamos em muitos, e muitos estão em nós, seja nesta ou em outra dimensão.
Ao autor os meus parabéns, com a convicção de que seus novos trabalhos beberão do amadurecimento que todo literato passa a ter com a aquisição de outros --- e de preferência antagônicos --- livros de eixos temáticos propínquos. Ademais, Patrick Sousa sabe que permanecer num mesmo redoma não nos faz avançar, e por isso já abriu, há muito tempo, a gaiola que pôde ou não, um dia, ter apressado suas asas de escritor.
Rômulo Rossy Leal Carvalho
Licenciado em História (UFPI/CSHNB)
Mestrando em Antropologia Social (USP/FFLCH)
Imortal da Academia de Letras do Vale do Riachão (ALVAR)
Autor dos livros “Além do Mais!” (poesias), 2015, “Luz no Horizonte” (poesias) e “Cinzas de uma Mansão” (romance), ambos de 2021. Coorganizador das obras: “História em Crônicas”, 2019, “Histórias do Brasil: caminhos didáticos para abordagens históricas, 2021, e “História, Igreja e Cristianismos: análises historiográficas”, 2022.