Aspidistra: a flor da Inglaterra
ASPIDISTRA: A FLOR DA INGLATERRA
Miguel Carqueija
Resenha do romance “A flor da Inglaterra”, de George Orwell. Editora Pé da Letra, 2020. Capa: André Cerino. Tradução: Livia Bono. Título original inglês: “Keep the aspidistra flying” (Mantenha a aspidistra voando), Victor Gollancz Ltd., London, 1936.
O comentário editorial que abre o volume diz que Gordon Comstock, o protagonista do romance, empregado de livraria, representa o próprio George Orwell, que na época (1935) morava em Hampstead e trabalhava numa livraria. A aspidistra — que eu não lembro de conhecer antes de ler esta obra — ainda segundo a introdução é “uma planta resistente e de vida longa em moda na época, em Londres, e que pode crescer até um tamanho impressionante. Gordon entende que todo inglês rega essa flor diariamente. É uma flor que vive bem em ambiente com pouca luz solar, em local com má qualidade de ar, devido ao uso iluminação a base de lamparinas a óleo ou a carvão”.
Já se vê que a aspidistra, no fim das contas, é um mero detalhe do romance, e um fator extra das diatribes do neurastênico Gordon. O autor imaginou uma família inglesa decadente, castrada por um patriarca dominador; e no início do século vinte achava-se reduzida a poucos membros que já não constituíam família e não demonstravam iniciativa. Nesse contexto Gordon, que tinha uma irmã chamada Julia, acaba sendo visto como a esperança da família, o suposto inteligente que iria crescer muito na vida, enriquecer. Assim a irmã mais velha é sacrificada nos estudos em favor do futuro esteio.
Nada porém foi como esperavam. Gordon Comstock é o personagem mais esquisito, maníaco e irritante que vocês possam imaginar: contrário ao capitalismo mas sem querer aderir ao socialismo doutrinal do editor Ravelston, seu amigo, Gordon passa a vida revoltado com o dinheiro, a escravidão em tudo ao dinheiro. Mas ele age o tempo todo como um idiota revoltado, e embora deteste não ter dinheiro e não poder realizar o que pretende — como escrever os seus poemas — não quer um “bom emprego” — demite-se de um onde trabalhava como publicitário, mentindo ao público para ganhar dinheiro — e prefere ficar num emprego medíocre, vivendo na penúria e numa hospedaria miserável, controlado pela hospedeira. Sua vida sentimental é também problemática, a garota Rosemary o adora mas é tratada com grosseria e estupidez.
É uma história de auto-destruição, como “Anna Karenina”, porém mais radical, pois o personagem é auto-destrutivo desde o início. E quando inesperadamente Gordon recebe pelo correio um cheque de 50 dólares que uma revista norte-americana lhe enviara pela aceitação de um poema, tudo o que ele consegue fazer é chamar Ravelston e Rosemary para uma comemoração, enche a cara antes mesmo de encontrá-los e torra o dinheiro (já convertido em libras) diante do amigo e da namorada, que não conseguem contê-lo e por fim, bêbado, ele agride um policial e acorda da ressaca em cana.
Achei de mau gosto que a revista dirigida por Ravelston tenha um título blasfemo, “Anticristo”; só porque o sujeito era socialista não precisava essa agressividade contra o Cristianismo. Esse detalhe Orwell deveria ter evitado. Quanto à história, é claro que ela se encaminha para um final melancólico.
Rio de Janeiro, 17 de novembro de 2022.