Livro “O método Jacarta” – anticomunismo versus anti-imperialismo
“O método Jacarta – a cruzada anticomunista e o programa de assassinatos em massa que moldou o nosso mundo” (Autonomia Literária, 2022) é um revelador e assustador livro do jornalista estadunidense Vincent Bevins, que de 2011 a 2016 foi correspondente no Brasil do jornal Los Angeles Times. Baseando-se em farta fonte de dados ─ documentos oficiais, matérias jornalísticas, livros, correspondências, entrevistas ─ a obra relata os golpes e assassinatos patrocinados pelos EUA no mundo no período de 1945 a 2000, supostamente em nome da contenção da expansão do comunismo durante e após a “guerra fria”.
O relato torna-se assustador quando mostra que a cruzada anticomunista é na verdade um projeto de extermínio de todos anti-imperialistas opositores ao projeto de hegemonia mundial do Tio Sam, após a vitória na Segunda Guerra, culminada com o terrorismo global das bombas atômicas. Sejam estes anti-imperialistas comunistas ou não. A ideologia anticomunista é resumida pela frase: “Você pode ser comunista, ainda que pessoalmente você não acredite que é comunista”, proferida pelo major salvadorenho Roberto D’Albuisson. Anticomunista fanático, o major fora treinado na Escola das Américas, uma das várias instituições estadunidenses, esta localizada no Panamá, para a doutrinação anticomunista de militares estrangeiros. D’Albuisson foi o líder do esquadrão da morte que assassinou o arcebispo católico Óscar Romero em San Salvador, em 1980.
O título do livro remete ao talvez mais trágico e sangrento dos episódios de expansão do domínio estadunidense no mundo: o golpe, em 1965, que derrubou o governo Sukarno, que tentava tornar a Indonésia um país próspero e soberano, e era apoiado pelo partido comunista do país. Ademais, Sukarno liderava um movimento internacional de união e emancipação dos países do chamado “terceiro mundo”. O golpe entronizou em seu lugar o governo Suharto, lacaio dos interesses dos EUA, que estavam de olho nas riquezas naturais do país arquipélago do sudeste asiático ─ principalmente petróleo e minérios ─ e, sobretudo, queriam estancar a expansão dos partidos comunistas na região e das ideias libertárias na Ásia e África. Jacarta é a capital da Indonésia. O golpe foi precedido por uma mentirosa campanha de demonização dos “comunistas”, acusados de assassinar oficiais do exército em rituais macabros. Uma farsa sistematicamente propalada. E eram tidos como “comunistas” todos que tivessem ideias anti-imperialistas e anticolonialistas, fossem ou não de fato comunistas.
A “descomunização” da Indonésia custou um milhão de mortos e mais um milhão de confinados em campos de concentração. A grande maioria das vítimas era de assassinatos realizados por milicianos e esquadrões da morte clandestinos. Monstruosas carnificinas. Foi um tempo de barbárie, não eram necessárias provas nem argumentos verdadeiros para justificar arrastões noturnos, quando a população era empurrada para praias desertas, onde os massacres impunes eram perpetrados. Os apoiadores de Sukarno, indiscriminadamente considerados “comunistas”, eram chacinados, pois eram organizações desarmadas, que tinham optado pela via política institucional, democrática.
A Indonésia foi o mais horrendo, mas só um dos muitos golpes mundo afora realizados em nome do suposto anticomunismo. O livro traz um mapa-múndi com os países que sofreram golpes no período 1945-2000. Só na América Latina foram quatorze países, entre eles o Brasil, em 1964. Somadas as vítimas no nosso continente, foram mais de quatrocentos mil mortos. A maior tragédia foi na Guatemala, com duzentos mil mortos entre 1954 e 1996. Em todo o planeta foram mais de um milhão e novecentas mil vítimas, em vinte e quatro países.
O caso da Indonésia é exemplar: Sukarno não era comunista, mas era um líder carismático anti-imperialista, que conseguiu unir em seu país desde o partido comunista até os militares. E tornou-se um líder influente em todo o mundo quando, unindo-se a Jawarhalal Nehru da Índia, Gamal Abdel Nasser do Egito e outros, realizou a Conferência de Bandung em 1955, que fortaleceu a união dos países do “terceiro mundo” ─ aqueles não alinhados a EUA e URSS ─ e declarou aversão ao racismo, ao colonialismo, e com a preservação da estabilidade e da paz.
O livro revela como os EUA, através de seus serviços secretos, forças militares e escolas de formação de fanáticos anticomunistas, trabalharam para confundir aspirações anti-imperialistas com o “comunismo”, e como trataram de demonizar tudo que pudesse então ser considerado “comunista”. Tal demonização começou antes mesmo da Segunda Guerra. Um exemplo citado no livro é a chamada “Intentona Comunista” no Brasil, em 1935, quando da revolta armada fracassada de alguns militares em Natal, Recife e Rio de Janeiro, liderada por Luís Carlos Prestes. Depois inventou-se e propalou-se a lenda que os revoltosos comunistas da intentona invadiam sorrateiros os dormitórios dos oficiais, para esfaqueá-los até a morte enquanto dormiam. Desde então “comunistas” passaram a ser confundidos, entre outros estigmas, com assassinos frios e traiçoeiros.
A síntese do método da cruzada anticomunista estadunidense é resumida pelo exemplo de Jacarta: assassinato em massa dos ditos “comunistas”, e aterrorização da população via demonização do “comunismo”. Ou o cidadão comum temia ser assassinado por ser tido como “comunista”, ou passava a temer e odiar os reputados sanguinários e traiçoeiros “comunistas”, ou seja, todos aqueles anti-imperialistas e nacionalistas que ousavam opor-se ao domínio colonialista estadunidense.
O autor Vincent Bevins relembra no livro a famosa frase do então deputado Jair Bolsonaro em 1999: “Através do voto você não vai mudar nada nesse país, nada, absolutamente nada! Só vai mudar, infelizmente, se um dia nós partirmos para uma guerra civil aqui dentro, e fazendo o trabalho que o regime militar não fez: matando uns 30 mil, começando com o FHC, não deixar para fora não, matando! Se vai morrer alguns inocentes, tudo bem, tudo quanto é guerra morre inocente”.
Naquele tempo, o deputado que viria a ser o presidente do Brasil já mostrava como estava bem doutrinado pela fanática cruzada anticomunista e o programa de assassinatos em massa propalado pelos EUA.