Mulher Davis

A Mulher Davis

O cinema se notabilizou por suscitar inúmeras sensações – medo, angústia, alegria, euforia – bons e mal-estares. Tal feito se deve a toda equipe de arte, dos diretores aos atores, passando pelos maquiadores até a equipe de organização e limpeza. Como dizem que a arte imita a vida, também é provável o contrário, sobretudo a partir de sua função catártica, o esbanjamento de emoções promovido por ela. Nesse sentido, não há como sair ileso após a leitura de “Em busca de mim”, de Viola Davis, Editora BestSeller, 2022. Para todos, recomendo que confiram suas atuações nos filmes: Histórias cruzadas (2011), Um limite entre nós (2016), A voz suprema do blues (2020) e o mais recente A Mulher Rei (2022), além da série Como defender um assassino (2014) – disponível na Netflix.

Em sua autobiografia, revela uma vida marcada por pobreza, racismo, colorismo, violência doméstica e sexual. Relatam-se episódios constantes e tensos de sua história até que ocorra sua ascensão profissional e, por que não dizer, humana. Viola visita a sua versão menina de oito anos e a coloca para dialogar com a mulher madura. Eleita em 2012 como uma das cem pessoas mais influentes do mundo, entende-se no livro o porquê. Sua representatividade feminina e negra é incontestável, haja vista sua biografia e seus feitos artísticos, que começaram ainda na adolescência, quando envereda no teatro e ingressa na faculdade de artes cênicas. Davis não poupa ninguém, inclusive ela mesma. Revela segredos, avança sobre monstros e se reconcilia com seu passado.

Não obstante toda sua luta até se tornar reconhecida e premiada com o Emmy – sendo a primeira mulher negra a recebê-lo – e com o Oscar em 2017, admite ser uma exceção entre os milhares de atores e atrizes nos Estados Unidos. Afirma que apenas 1% ganha mais de 50 mil dólares por ano, desvendando o fato de que esse universo não é tão glamoroso quanto se pensa, muito menos se pensarmos na realidade brasileira... e nos privilégios da branquitude e da discriminação de cor inserta em contexto internacional.

Além do seu amor pelo ofício artístico, o que se destaca, de fato, na obra é a devoção dessa mulher por sua família, mesmo por seu pai, que em diversas ocorrências quase assassinou a esposa, mãe de Viola. Chega até a ser comovente a forma como é relatada a morte desse homem. Faz-nos repensar nossos vínculos familiares e reconsiderarmos o esforço que todos nós temos de ser gente. Não se diz isso tentando reduzir a violência contra a mulher. De jeito nenhum. É inadmissível, mas o seu perdão é tão supremo quanto a voz que se ecoa no livro e em suas performances cinematográficas.

São histórias cruzadas estabelecendo um limite entre nós, revelando-nos a majestade dessa mulher que nunca se viu como rainha, entretanto reconhece ter chegado à realeza, porque teve a coragem de encarar a realidade. Dor. Sofrimento. Privação. Fome. Perseverança. Obstinação. Propósito. Isso a manteve à procura pela dignidade e pelo direito à sensualidade sem ser estereotipada pela cor.

Quem vê com o coração consegue o poder de ampliar horizontes. Assim o fez e diz: “Meu trabalho não é estudar outros atores, porque isso não é estudar a vida. Estudo pessoas o máximo que posso. Se você me assiste, não é meu trabalho oferecer a você uma fantasia. É meu trabalho oferecer você mesmo a você. Nas pessoas há uma caixa infinita de tipos, situações, comportamentos diferentes. Esses tipos contradizem percepções. Combatem noções preconcebidas. São tão complexos e vastos quanto a galáxia. Na minha vida, eu existo”. Sim, ela existe e resiste. Ela é Viola Davis. E nós somos todos essa confusão de máscaras, as distintas personas que se confundem.

“Em busca de mim” é um daqueles livros importantes para pensarmos a nossa vida, nos (re)encontrarmos, alimentarmos nosso respeito à diversidade e, indubitavelmente, elevarmos nossa estima pela artista, mulher, ser humano, Viola Davis. Vida longa à artífice.

Leo Barbosa é professor, escritor e poeta.

(Texto publicado em A União - 07/10/2022)