O Visconde Partido ao Meio - de Italo Calvino
É uma fábula? É uma alegoria? É um conto fantástico? É um conto grotesco e arabesco? É uma novela de terror? É uma novela de horror? É um conto folclórico? O que é Visconde Partido ao Meio, do escritor italiano Italo Calvino? Uma obra em cuja receita há fábula, alegoria, fantasia, o grotesco e o arabesco, e terror, horror, e folclore, e outros ingredientes novelísticos que o fazem um primor da literatura moderna. Não é prudente classificá-lo numa escola literária unicamente, tampouco dá-lo como uma peça datada. É um romance realista, sem que o seja; realista, porque retrata o ser humano sem idealizá-lo, e não é realista porque possui a narrativa elementos fantásticos, comuns às obras de Washington Irving e von Chamisso, e às folclóricas, às de fábulas.
É o narrador das aventuras e desventuras do Visconde Medardo di Terralba, o herói da novela, o sobrinho dele; e o relato conta eventos que se sucederam quando era o narrador um garoto de uns oito anos de idade.
Está o leitor se perguntando, curioso, intrigado: "Visconde partido ao meio?! Que história é esta?!" E eu, que não desejo que o leitor se perca, se perturbe, com a questão, já lhe digo: O Visconde Medardo di Terralba, mal entrado na vida adulta, e seu fiel escudeiro, Curzio, numa época em que os cristãos, além de enfrentarem a peste, batiam-se contra os turcos, alistaram-se no exército cristão, rumaram à Boêmia, foram ao campo de batalha. E tão impetuoso! tão inconsequente! o visconde, que ele salta à frente, de espada em punho, e peito aberto, de um canhão, e é alvejado no peito, cindindo-se em dois. E com a metade de si, e inteiro assim reduzido à metade, regressa à sua terra, onde inferniza o povo. A metade que lhe restava era o mal encarnado, inteiramente má. O Visconde Medardo di Terralba condena à morte, na forca, bandidos, e suas vítimas, e caçadores, e os guardas; e camponeses, que ao castelo não haviam recolhido a devida porcentagem da colheita; e perturba Pamela, uma pastora, por quem se apaixonou; e condena Sebastiana, que lhe era querida ama, ao leprosário Aldeia do Prado do Prego. Corta o visconde tudo pela metade, flores, animais; incendeia seu castelo, e celeiros, e casas. As suas maldades horrorizam os do povo, que lhe querem a morte, mas, impotentes, nada lhe fazem para dar-lhe fim. Vivem os do povo sob o jugo do maldoso, maléfico, demoníaco Visconde Medardo di Terralba, melhor, da metade, que era inteiramente má, dele. Vivem perdidos; os infortúnios se lhes multiplicam. É-lhes impossível viverem sob o jugo de um visconde tão mal, tão hediondo, tão desumano. Ser-lhes-ia de grande alegria se, em vez da metade má do Visconde Medardo di Terralba, sobrevivesse a metade boa, que, infelizmente, estava morta. Morta?! Um dia, a todos surpreendendo, aparece viva a outra metade do visconde que havia sido partido ao meio. E ela se revela boa, inteiramente boa, antagonista de sua outra metade, a má. Agora, os do povo têm de se haver com dois viscondes, o que é, sendo a metade do visconde Medardo di Terralba, inteiramente mal, e o que é, dele sendo a outra metade, inteiramente bom. Dir-se-ia que uma das metades dele encarna o mal absoluto, é o mal em estado puro, e a outra o bem absoluto.
A galeria de personagens constituem um panorama, alegre e divertido, dramático e grotesco, do povo que vive à sombra do Visconde Medardo di Terralba, um microcosmo, descrito com alegria e jocosidade, da sociedade humana. Estão vivos, e Italo Calvino criou-os para animar o leitor, ouso dizer, o visconde Aiolfo, avô do narrador, um ancião recluso que vivia num viveiro; Fiorfiero, um bandido; o mestre Pedroprego, carpinteiro e albardeiro; o doutor Trelawney, médico que não exerce a medicina, sempre ocupado com descobertas científicas, caçador de fogo-fátuos, hábil no vinte-e-um, médico de bordo no navio do Capitão Cook; a ama Sebastiana; Galateo, o leproso; o velho Ezequiel, huguenote, que estribilhava "Peste e carestia!"; Esaú, um garoto, que, ainda não havendo completado dez primaveras, já era um ladrão respeitável; a pastora Pamela; e o protagonista Visconde Medardo di Terralba, e Curzio. E o narrador, que, na sua infância, contava histórias para si mesmo e brincava de assustar-se.
É o Visconde Partido ao Meio (no original, italiano, Il visconte dimezzato), uma alegoria, uma fábula, um conto folclórico, e fantástico, e de terror, e grotesco. Permite inúmeras interpretações, e pede mais de uma leitura, porque é divertido, e porque, embora aparente, em sua tessitura, despretensão de Italo Calvino, trabalha uma questão que mexe com os neurônios dos maiores filósofos: O que é o ser humano?