Os Restos Mortais - de Fernando Sabino

É Fernando Sabino escritor perspicaz, sutil, que sabe, intui, sente, com sua visão aparentemente estreita (e quem acredita que é estreita, engana-se) da sociedade, e das pessoas, as profundezas da alma dos homens, e com seu talento literário traduz, para uma linguagem simples e um estilo graciosamente divertido, o que faz dos contos dele, dir-se-ia, teatro de costumes, e dele um herdeiro de Arthur Azevedo, Martins Pena e França Júnior (desconheço-lhe a biografia, e tampouco suas leituras, para dar com certeza que é ele devedor aos três escritores citados), a sofisticada simplicidade do ser humano, de suas relações sociais, de suas suscetibilidades, de suas simultaneamente grosseiras e refinadas vicissitudes.

O humor de Fernando Sabino está na descrição de tipos humanos, e suas relações, e seus encontros e desencontros, que, de outros escritores, sisudos e desprovidos de espírito alegre, passam despercebidos, a inspirá-lo o que é dele, o que nasceu com ele, o talento de ver as coisas humanas pela perspectiva da graça; mesmo que ele não queira fazer humor, não conscientemente queira ver o lado risível das coisas humanas, lhe é inescapável, incontornável a visão bem-humorada, a leitura jocosa da vida humana em sociedade.

É Fernando Sabino escritor sensível. Neste conto, ou novela, Os Restos Mortais, de umas quarenta páginas, ele narra os contratempos que tem de enfrentar, após a morte de Galdino, um homem de só um olho bom, epiléptico, oligofrênico, o doutor Laerte, a esgotar-se com os cuidados, que lhe exigem os órgãos públicos, com, do morto, a autópsia, o enterro, o atestado de óbito. Sucedem-se os apuros que o perturbam, e as confusões: ora o cadáver do Galdino é trocado pelo de outro homem, ora o médico que atendera Galdino na véspera da morte deste nega-se a fazer do falecido a autópsia, ora o cadáver desaparece, ora falta água no hospital. Enfim, a aventura do doutor Laerte é, dir-se-ia, puro nonsense, mas disparatada não é. Com graça e humor, e sensibilidade, Fernando Sabino descreve os personagens, os capítulos a se sucederem num ritmo ligeiro, sem que seja apressado, até o desfecho, quando, num colóquio harmonioso entre o doutor Laerte e seu pai, às mãos de ambos copos com Old Parr, revela-se a origem de Galdino, que tanto lhes ocupava os pensamentos.

Ilustre Desconhecido
Enviado por Ilustre Desconhecido em 04/10/2022
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