O sorvete (Contos de Aprendiz) - de Carlos Drummond de Andrade.
Dois garotos, o narrador, de onze anos, filho do coronel Juca, e seu amigo, Joel, de treze anos, de pequena cidade do sertão, chegam à cidade grande, de cinquenta mil habitantes. Cidade grande de cinquenta mil almas? Esquecia-me: a história, lembrança de um episódio que o filho do coronel Juca relata trinta anos depois, passa-se no ano 1.916. Naquela época, era uma grande cidade a de cinquenta mil habitantes.
Dá-nos a conhecer Carlos Drummond de Andrade, um prosador refinado, poético, que muito me agrada, num conto, narrado em primeira pessoa, o narrador a buscar o tempo perdido, aspectos urbanos comuns a todas as cidades de então, seu comércio, os hábitos de seu povo. São as descrições exíguas de informações, mas não irrelevantes; são as suficientes para ambientar o leitor: lá está o cinema, e o parque, onde há um gavião-de-penacho, o colégio, as casas de parentes dos dois jovens protagonistas, e a confeitaria, onde, certo domingo, serviu-se sorvete de abacaxi, delicioso, especialidade da casa. Tinham os dois garotos, o herói da história, tímido e xucro, e seu amigo, Joel, resoluto e determinado, o hábito de, antes de, aos domingos, saírem, a passeio, do colégio, do qual eram internos, planejarem o passeio, o itinerário à perfeição elaborado, e o seguiam à risca, porque era o dinheiro curto. E foi no domingo em que a confeitaria servia sorvete de abacaxi que a história se detêm: os dois garotos seguiam o passeio planejado na véspera, até o momento em que se depararam, à frente da confeitaria, com um quadro-negro, no qual, escrito a giz branco, lia-se: "Hoje. Delicioso sorvete de abacaxi. Especialidade da casa. Hoje." Os garotos, com água na boca, babavam de desejo de comer sorvete de abacaxi, iguaria que ambos, do sertão chegados à cidade, jamais haviam degustado. Aventaram o desejo de comerem sorvete. Mas, e o cinema? O dinheiro era escasso: tinham os garotos de optarem: ou o cinema, ou o sorvete. Foram ao cinema. E enquanto assistiam às imagens em movimento, na sala escura, pensavam no sorvete de abacaxi, e no sorvete pensando mal atentaram para as cenas que a película lhos exibia. E não se contiveram: foram à sorveteria, e serviram-lhes sorvete de abacaxi. E mais não digo, para não estragar a surpresa do leitor. Não quero, assim se diz hoje em dia, "dar spoiler".
Carlos Drummond de Andrade narra a aventura, com muita sensibilidade, e simplicidade poética em sua prosa, dos dois garotos, e a encerra com o toque de mestre que é o seu. Em tal reminiscência, passados trinta anos, o narrador, através do tempo a ciceroneá-lo o escritor, reconstrói uma cena - que para outros seria insignificante - que pertence à sua vida, cena que fez parte de sua história, cena que participa de sua formação enquanto pessoa, enquanto homem. E não é a vida de todo homem uma sequência sem fim, que encontra o fim com a sua morte, de pequenas coisas, de pequenos acontecimentos? Carlos Drummond de Andrade não se ocupa de buscar, na vida de seus personagens, para apresentá-los aos leitores, um episódio grandioso, épico, trágico, digno dos heróis gregos, dos trágicos shakesperianos, dos aventureiros que singravam os sete mares, não. Ele, e com singeleza admirável, conta a ida deles a uma confeitaria, para chuparem sorvete de abacaxi. E com que graça o faz!