Quando o trabalho não enobrece

Uma resenha do livro Se eu não posso ser quem sou

 

Eu sou um fã de filmes de zumbi. Ok, eu sei que muitos deles são bastante simplórios, e reconheço que o gênero foi explorado a exaustão na década passada. Mas há muitas coisas neste subgênero que me atrai bastante. Não apenas os filmes de zumbi, como a maioria dos filmes de apocalipse, de queda da civilização humana. Há algo nestes filmes que ressoa em mim.

Provavelmente um dos principais motivos é a minha relação com o trabalho. Não apenas mas especialmente a minha realidade trabalhista. A rotina de por 5 dias da semana perder minhas horas mais produtivas em uma atividade sem sentido com pessoas que não me identifico me parece absurda. Mas ao mesmo tempo tão inescapável que parece ser mais fácil imaginar o fim do mundo do que imaginar uma mudança neste sistema. A ficção apocalíptica parece paradoxalmente trazer uma sensação de liberdade, de perda dos grilhões. Naturalizamos tanto o trabalho moderno que não conseguimos imaginar uma forma não catastrófica de escape.

E não sou só eu. Uma parte significativa da sociedade sofre para ter um emprego com estabilidade e boa renumeração. Outra sofre se sentido prisioneira de seus empregos tão desejados por quem não os tem. O atual sistema trabalhista pode até funcionar em termos econômicos, mas fracassa em termos humanos. Mesmo os bem posicionados simplesmente não se identificam com seu dia a dia. Dúvida disto? Basta ver quantas pessoas odeiam as segundas-feiras. 

Em especial o serviço público. O nível de insatisfação de servidores públicos com seu trabalho é estratosférico. A tão desejada estabilidade se transforma facilmente em uma gaiola de ouro. E isto acaba refletindo em graves questões de saúde, sendo bem comuns doenças trabalhistas e psiquiátricas. 

Em Se eu não posso ser quem eu sou acompanhamos a jornada de Geórgia, uma servidora do judiciário que caiu nesta armadilha, e acabou por viver fora de seu próprio centro por anos. Até que uma conjunção de fatores improváveis consegue fazer que Geórgia vá aos poucos se encontrando e também construindo uma saída: largar o cargo público e viajar em um motor-home pela América do Sul recolhendo dejetos recicláveis para proteger o meio ambiente.

Leila de Souza Teixeira nos envolve em uma narrativa intimista, onde os movimentos externos de Geórgia são uma expressão dos seus conflitos internos. Não é apenas uma mulher buscando um novo emprego, e sim um ser humano tentando encontrar o sentido de ser e de viver em uma realidade desumanizante.

Albert Camus nos alerta que a única resposta coerente do homem moderno diante do absurdo que é a vida seria reconhecer o absurdo como inevitável, mas se rebelar contra ele. Para tanto caberia a nós reconhecer a liberdade que a falta de um sentido maior nos trás, bem como a responsabilidade que temos de definir a nós mesmos. Somente nós podemos definir quem somos, e como podemos criar uma vida que afirme e reforce quem queremos ser.

Geórgia vive este dilema existencialista, junto com a angústia, os conflitos e a sensação de vazio que costuma a acompanhar. Mas o mais importante, ela se encontra, sobrevive a tempestade e percebe que para abraçar o absurdo da vida é preciso descobrir e definir o que significa ser humano. Uma busca pessoal e universal. 

Se eu não posso ser quem eu sou é uma leitura leve, fluida, mas incômoda. Em especial para um servidor do judiciário, como eu. Mas também um convite para iniciar uma jornada. A nossa jornada.