Abandonar um gato - Haruki Murakami

Em "Abandonar um gato", o autor Haruki Murakami navega pelas memórias da infância e juventude com seu pai, um sobrevivente das guerras sino-japonesas e da Segunda Guerra Mundial. Alguns detalhes são vagos, mas outros, bem marcantes, traçam uma relação, bem intimista, entre pai e filho, que se desenvolveu nos contornos do destino implacável da História.

A primeira lembrança descrita é a de quando Haruki e seu pai abandonaram uma gata, já adulta, na praia e o que se sucedeu a esse episódio estabeleceu algo em comum entre os dois, como a referência de algo que pudesse servir de parâmetro ao longo dos anos, principalmente quando Murakami se refere ao "abandono" que seu pai sofreu pelos pais, e como ele próprio não passou por essa realidade, já que era filho único.

A cada capítulo, então, o autor vai tecendo pequenas memórias que de alguma forma delineiam o perfil de seu pai e o seu próprio. Para quem nunca leu nada do autor, ou leu algo de outro gênero, pode se aproximar de uma visão clara da época das grandes guerras através de uma escrita fluida e, até certo ponto, prática, como o próprio Murakami coloca.

Em muitos trechos há pensamentos e dúvidas não desenvolvidos completamente, em parte porque o autor não se lembra e em parte porque ele os deixa implícitos, fazendo com que o leitor crie interpretações diversas de acordo com o contexto da época e da cultura japonesa. Como por exemplo, a sucessão no cargo de monge após o avó de Murakami falecer, deixando em aberto a escolha entre 6 filhos, sendo o pai de Murakami o mais esperado. Mas porque isso era esperado principalmente do pai do autor? E porque Haruki sentiu qual era a decisão de seu pai antes que este a declarasse?

Muito dos fatos que são expostos podem ocasionar um sentimento de autoidentificação, mas como não há muitos subterfúgios e, acredito eu, há mais razão do que emoção nas palavras, o livro é em si uma mera elaboração dedicada ao que poderia ter acontecido e não aconteceu, o grande E SE? que fica vagando diante das possibilidades da vida e do rumo que a atitude de outras pessoas poderia ter alterado em nossa própria vida.

Conciso e contendo um grande registro de momentos conflitantes da humanidade, Abandonar um gato é tão necessário quanto uma xícara de chá na companhia de gatos e livros, uma visão do passado que é presente e está dentro de nós, nos construindo e nos aproximando e afastando de nossos pais.