RESENHA SOBRE "ANTES DE EVANESCER" - POR ELEILSON LEITE
“Meu espirito dorme em algum lugar frio”
Primeiro romance de Escobar Franelas, renomado poeta das quebradas, é um drama juvenil – e de classe média. Mas início xoxo conduz ao inusitado: com densidade arrebatadora, o cativeiro que prende o corpo acaba por libertar a alma…
Por Eleilson Leite, na coluna Literatura dos Arrabaldes
(Compartilho a leitura que fiz do livro Antes de Evanescer (Scorteci Editora, 2011), do poeta Escobar Franelas. O autor, cria da zona leste, é daqueles pioneiros da literatura periférica antes que ela assim fosse reconhecida nos anos 2000 com o advento das antologias do Ferréz na Caros Amigos, dos saraus e slams. Com mais de 50 anos, Franelas se engajou nos movimentos culturais na década de 1980, não por acaso, dedica seu livro ao lendário MPA – Movimento Popular de Arte, da zona leste, um dos principais movimentos culturais da época em que a periferia era morada do proletariado fabril.)
Foi na dobra dos anos 2000 que o autor surgiu destaque como poeta. Em 1998 ganhou o concorrido prêmio Arte na Cohab/SP na área de literatura e no mesmo ano publicou seu primeiro livro que virou um clássico: Hardrockrenroll. Nos anos 2000, ele participou de inúmeras antologias e de coletivos culturais, como o Espaço Casa Amarela que segue forte na zona leste, além do Fora do Eixo, rede que surgiu avassaladoramente nos anos Lula e se converteu em um Hub atualmente do qual faz parte o Mídia Ninja. Mais recentemente, Franelas tem atuado como produtor e seu mais novo livro, do qual é organizador, chama-se Memórias: 10 histórias sobre o viver em Itaquera que revela nuances daquele icônico bairro periférico antes e depois da fama.
Mas, em Antes do Evanescer, Franelas não fala de periferia. Tampouco aborda os conflitos de 2006 entre o PCC e a Polícia Militar de São Paulo, embora uma nota introdutória da obra diga que a história se passa naquele contexto. Pode ser, mas aquela tensão não está lá e sequer é mencionada como notícia como ocorre com um episódio da época muito relevante, porém, de baixa repercussão popular que foi a nacionalização do gás por parte da Bolívia, fato ocorrido em maio daquele mesmo ano e que obrigou o governo brasileiro a fazer concessões ao país vizinho. O livro aborda os conflitos existenciais de um adolescente na transição para a juventude, ali pelos seus 15 anos quando ingressa no ensino médio: amizades, família, a descoberta do amor, escolhas profissionais; religião, conflitos de classe, dor e solidão.
Essas dimensões da vida são tratadas a partir das relações de um jovem de classe média baixa, filho único, cujos pais se mantém casados, num convívio aparentemente inerte e sob o peso de sérias restrições financeiras devido ao desemprego do pai, um gerente de recursos humanos e do salário apertado da mãe, professora universitária numa faculdade particular de baixa reputação acadêmica. Se há uma indicação de tempo, não há de espaço. O condomínio e o colégio particular onde se passam a parte inicial da trama não têm endereço, mas, pelas características, é em São Paulo, porém, não é um território periférico.
O narrador é o próprio personagem central da história. Leandro, que é conhecido como Leo, é o melhor amigo de Leonardo que também é chamado pelo mesmo diminutivo e essa coincidência será o gancho para a segunda parte do livro que se passa em um local completamente diferente do ambiente de classe média em que se desenrolam as relações dos dois e suas famílias. Embora habitem o mesmo condomínio e colégio, há uma diferença social entre eles: Leonardo é muito rico e mora na cobertura do prédio num apartamento de alto padrão. O rapaz, que também é filho único, vive cercado de mimos, tem casa na praia e passa férias na Disney, roteiro básico e um tanto clichê para caracterizar pessoas ricas.
O autor estruturou a história no decorrer de uma semana. Os fatos, porém, se desenrolam precisamente até a quarta-feira quando acontece o corte brutal na trama. Leandro se mete numa enrascada involuntariamente e passa a viver confinado num muquifo perdido em área rural suburbana no qual perde a noção dos dias depois da quinta-feira. É daí em diante que a história passa a ser outra, totalmente centrada no personagem principal e nessa situação inusitada e cruel ele alcança um nível de reflexão sobre a vida que havia relatado na parte inicial. O livro, então, ganha força devastadora, algo que não se presume nas primeiras páginas da obra.
Franelas demonstra ser um autor com domínio da narrativa, embora este tenha sido seu primeiro romance. Até então havia publicado alguns contos e, principalmente, poemas. E talvez aí esteja a chave para entender o quanto ele consegue ser denso na expressão de sofrimento do personagem. O lirismo poético possibilita esse alcance, pois vai fundo no sentimento pessoal. Mas há uma senha para entender o abismo existencial manifestado pelo personagem na situação limite em que se encontra onde tudo pode estar a ponto de evanescer. A pista está na derradeira música que Leandro ouve em seu fone portátil a caminho da escola na manhã fatídica em que é raptado.
Atrasado e esbaforido, ele aceita carona do Matias, chofer da família do. Ao entrar no carro, a mesma banda estava tocando no rádio, porém, outra canção. Que banda é esta? Evanescence. A relação com o título do livro não é mera coincidência. Um dos principais hits dessa banda norte-americana que fazia muito sucesso na virada do milênio é Bring me to life (2003), cuja letra diz muito sobre os dramas que Leandro vive e ajudará a entender o que Franelas quis transmitir. Foi dela que tirei o verso que dá título a este texto. Antes de evanescer evidencia também uma característica deste escritor que é a habilidade de fazer uma literatura pop e muito bem elaborada, como são as músicas do Evanescence.
A escola e o condomínio
O livro ressalta desde suas primeiras páginas a paixão de Leandro por Suzane, aluna linda que chegou na escola, procedente de Santa Catarina. O adolescente do ensino médio se atrai por ela e, por meio do grupo de teatro, busca se aproximar da musa. O ponto forte dessa primeira parte, no entanto, é a descrição que faz sobre a descoberta do prazer sexual pela masturbação abordada com um excelente ritmo de escrita e foco narrativo em torno da puberdade masculina. Outro aspecto interessante é a linguagem. O personagem narrador conversa com seu leitor: “mais à frente explico melhor esse meu exagero piegas, tipicamente juvenil…”, recurso que dá ao livro uma narrativa típica de literatura de blog, algo que o autor demonstra ter habilidade, embora às vezes exagere nas explicações de suas motivações com o texto e com a história que narra, principalmente nesta parte.
A trama começa a ganhar consistência a partir do capítulo 2, que gira em torno do ensaio do grupo de teatro do qual participa seu melhor amigo. Leandro acompanhou a atividade, pois necessitava fazer um trabalho de geografia com Leo, mas do grupo participava Suzane, sua crush, o que tornou a espera pelo término do ensaio algo menos penoso, já que ele não gosta das artes dramáticas. Lutz, Marcos, Sofia, Malu, Suzane, Leo — os personagens aparecem na trama, na medida em que definem suas participações na adaptação de Navio Negreiro. De modo inusitado, Leandro entra na história. O grupo se dá conta da necessidade de elaborar uma trilha sonora para a apresentação e ele aparece como solução para a tarefa. Sentado no fundo da sala, foi surpreendido pelo grupo e aceitou o desafio para estar mais próximo de Suzane que lhe estimulou a se somar ao grupo. A bela catarinense, porém, sequer se despediu dele no término do ensaio, frustrando as expectativas dele quanto a uma possível reciprocidade dela.
No capítulo seguinte, a narrativa revela como são a família de ambos, que moram no mesmo prédio, porém, Leonardo, de classe média alta, vive na cobertura que tem piscina enquanto ele e seus pais vivem num apartamento mais modesto no segundo andar. Explica melhor o momento de dificuldade financeira pelo qual sua família passa: o pai, gerente de RH está desempregado há seis meses, a mãe, professora universitária tem mantido a casa com seu salário insuficiente. Os amigos ricos têm casa na praia, passam férias na Disney e todo o universo de gente rica e pouco ilustrada.
O convívio é um um tanto tenso entre as famílias. A mãe de Leandro tem mais resistência e seu desconforto incide sobre Laura, sua homóloga na relação interfamiliar. De vida fútil, a ricaça cultiva uma aparência bonita e sensual à custa de plásticas e silicone. O dado relevante é o detalhamento do perfil de Leo. Ele é bajulado pelos amigos interesseiros da escola. Os colegas implicam com o jeito do rapaz que dá pinta de ser homossexual, mas o cortejam para aproveitar da piscina no apê e da casa de praia. Leandro o alerta sobre isso. Leo saca, mas é pragmático, observando que a vida é um jogo de interesses. Ao relatar essas questões para a mãe, percebe que ela começa a se interessar mais pelo amigo do filho. Este, por sua vez, fica enciumado com a atenção, posto que ter uma mãe mais inteligente que a do Leo é o único ponto em que se vê melhor do que o amigo.
Com características teatrais, a história passa para o ato seguinte no qual Leonardo e Leandro se ocupam da escolha das músicas para a trilha sonora da peça. Trabalho exaustivo, porém, prazeroso. Leandro só pensava em Suzane, sua motivação para se tornar produtor musical de uma peça de teatro estudantil secundarista. Um intervalo para tomar banho e voltam a se juntar no apartamento de Leo, agora para fazer o trabalho de geografia sobre a crise no fornecimento de gás da Bolívia para o Brasil. Trabalho cansativo, mas nada prazeroso, pelo menos para Leandro.
No dia seguinte, acorda atrasado. Há uma situação rocambolesca envolvendo seus pais, o pai de Leo e o motorista Matias que se atrasou, fazendo com que o vizinho tivesse que levar o filho para a escola. Tal situação livrou o burguesinho de um sequestro que acabou vitimando Leandro, pois ele foi de carona com Matias que, ao cruzar na rua com ele, se ofereceu para leva-lo para a escola. Quatro bandidos num carro armaram uma emboscada numa rua pouco movimentada. Matias foi atingido por um tiro; Leandro, por conta do apelido Leo, foi levado por engano.
O cativeiro como abismo
A trama aqui dá um giro de 180 graus. Tudo que aconteceu antes passa a ser apenas contextualização. É tão densa essa parte que ela consegue ter vida própria, acentuando o aspecto acessório dos primeiros capítulos. Leandro foi parar num quartinho mau acabado e abandonado no alto de um morro em área rural, daquelas em que, segundo descrição do autor, japoneses mantém chácaras. Não há banheiro e nenhuma mobília, apenas uma cama velha e um caixote de feira que lhe serve de mesa. Leandro chegou amordaçado e amarrado. Teve seu corpo solto, porém seguiu acorrentado à cama. Uma senhora cuidava do local e lhe servia comida. O canto dos pássaros e de sua carcereira lhe serviam de alento. Dona Dina era evangélica e cantarolava os hinos de igreja, cujos versos são reproduzidos pelo autor.
Os bandidos que lhe sequestraram se deram conta do equívoco, mas não sabiam como desfazer do engano, já que Leandro viu os rostos deles. Diante disso, a iminência da morte passa a ser um elemento a mais no terror que passou a ser a vida de Leandro. A qualquer momento, tudo pode evanescer. O autor consegue descrever essa situação de sofrimento em 64 páginas (de 117) do livro com uma riqueza de detalhes impressionante. Mas antes de ler, ouça Bring me to life do Evanescence e veja o clipe da canção que tem versos como: “meu espírito dorme em um lugar frio/ até que você o encontre e o leve de volta para casa”. Esse é o apelo que Leandro faz, embora, às vezes, se mostre resignado perante os fatos.
Ele repassa sua vida a limpo no cativeiro e percebe o quanto o pai é uma figura pouco significativa em sua vida ao passo que sua mãe ganha ainda mais importância. Numa hierarquia, ele coloca Suzane em segundo lugar. O pai só tem espaço no pódio porque Leo, que era seu melhor amigo, passou a ser odiado. A iminência da morte o leva a escrever um diário onde registra o inventário de seus sentimentos. O gosto pela leitura e escrita do personagem cria uma situação de metalinguagem. Nesses momentos, Franelas demonstra seu esmero com as palavras, como nessa passagem: “O alívio da bexiga vazia trouxe uma sensação de paz. Fiquei voando numa alegria contida, silenciosa e triste, que borrifava uma sonolência tranquila sobre meu corpo cansado, seco e faminto”.
O corpo de Leandro cativo e acorrentado (uma referência, talvez, a Navio Negreiro) passa fome, sede, frio e padece de cansaço. Mas sua alma flutua em busca desesperada do que pode ser essencial para a sua existência. Flutua como se estivesse num abismo, uma metáfora que parece contraditória com o confinamento. Mas não se aprisiona uma alma, apenas o corpo. E o que busca essa alma errante? Por certo é o amor do qual se privou. O amor de sua mãe e de Suzane para as quais apela, como na canção já citada: “Acorde-me por dentro/Salve-me da escuridão/ Salve-me do nada que me tornei/ Traga-me para a vida/ Antes que eu me desfaça”. Antes de evanescer….
Texto original extraído de https://outraspalavras.net/poeticas/meu-espirito-dorme-em-algum-lugar-frio/ <acesso em 06/7/22>