Literatura repulsiva
LITERATURA REPULSIVA
Miguel Carqueija
“Em busca de um novo amanhã”, por Sidney Sheldon e Tilly Bagshawe, pretende ser uma sequência de “Se houver amanhã”, do primeiro autor. A edição brasileira é da Editora Record, Rio de Janeiro-RJ, 2ª edição, 2016, com tradução de Mariana Kohnert. Título original: “ Chasing tomorrow”.
Sidney Sheldon é um desses mitos furados, representando na literatura policial a mesma decadência que Stephen King representa no gênero terror. Assim como King não resiste comparação com Poe, Mary Shelley, Lovecraft, Machen, Stevenson e outros grandes do terror, Sheldon é apenas medíocre perto de Conan Doyle, Dorothy L. Sayers, Agatha Christie, Carter Dickinson, Erle Stanley Gardner, Dashiell Hammett e outros do gênero policial. Ele não consegue nem criar clima.
Evidentemente Sheldon é um autor comercial, de grande vendagem, de um tipo que se tornou muito comum hoje em dia, que produz uma ficção amoral e contra-culturista. São histórias que derivam para a sordidez, sem nenhum personagem nobre, e onde os pretensos “heróis” são pessoas de caráter duvidoso, como essa Tracy Whitney. Na história anterior até existe algum interesse: uma jovem condenada injustamente por crime que não cometeu e depois de livre vai tratar de se vingar de todos os que lhe fizeram mal. Não que o tema vingança, como no filme “A noiva estava de preto”, seja saudável. Mas se a primeira história era sofrível, a sequência é um desastre.
Tracy tornou-se vigarista e casou na Igreja com seu parceiro Jeff Stevens. O casamento é no Rio de Janeiro (?). Mas eles não eram católicos, diga-se de passagem, são personagens sem religião. Viveram de golpes, depois Jeff tenta uma profissão honesta. Aí uma intriga separa os dois por dez anos e Tracy, grávida, some do mapa. Entra em cena o agente da Interpol Jean Rizzo, que caça um assassino serial, um psicopata fanático religioso que mata prostitutas e deixa uma Bíblia (?) junto ao cadáver. Até o Santo Sudário entra em cena, e mesmo reconhecendo o caráter de fotografia da relíquia (fato que comprova o milagre) o texto ainda coloca sandices contra a autenticidade do objeto.
A contra-cultura reflete no uso de linguagem chula, na blasfêmia pronunciada pelo “herói” Jean Rizzo, na exploração dos seus assuntos familiares, no filho pequeno de Tracy que nem age como criança e na maneira como a trama vai relacionando religião com psicopatia. E nos detalhes cruéis que ocorrem. É um romance sensacionalista, fátuo e sem estilo, produzido para ser uma obra comercial — apenas isso.
Vou só “implicar” com um tipo de cena que me irrita, e que é muito comum em filmes e novelas. É na página 227. Alguém bate à porta (é o citado agente da Interpol) e Tracy simplesmente abre — sem saber quem está do outro lado. Ora, nenhuma pessoa em seu juízo perfeito, na vida real, faz isso. Por que ela não abriu a janelinha, ou espiou pelo olho mágico, ou usou o pega-ladrão? Em filmes e novelas ainda existe a desculpa de que a produção quis economizar no cenário. Mas num livro...
Rio de Janeiro, 10 de junho de 2022.