Ritos de Passagem

Há detalhes na literatura que geram um misto de sentimentos, entre eles o de identificação. Pode-se dizer que é assim que Golding atrai o leitor para uma trama que combina narrativa histórica com a forma epistolar em "Ritos de Passagem", num ambiente desafiador e, não raras vezes, pouco acolhedor, assim como a sociedade.

O narrador em primeira pessoa, Edmund Talbot, nos introduz e nos guia através de seus relatos diários que são direcionados a um parente. Vendo-se em posição superior por, futuramente, ter um cargo no Governo, o senhor Talbot expressa suas vontades e desejos de maneira muito casual, assim como suas ligações sociais. Pela perspectiva de Talbot, nós vemos os personagens secundários a bordo do navio com diferentes matizes, desde charlatões a beberrões, passando é claro pelos oficiais da marinha e emigrantes.

Ali, em diversos pontos da nau, todos representam seus papeis tais como fariam em terra. De início, a apresentação e ambientação se dão de forma arrastada, o que pode gerar um desinteresse pelo que pode acontecer em meio a pessoas tão genéricas e outras tão presas a suas posições. Há também vários momentos em que o autor utiliza termos técnicos referente à embarcações e viagens marítimas no geral, o que pra mim não ajuda muito na fluidez da leitura.

Porém, em um certo ponto do livro, ocorre um conflito entre Talbot e o Capitão Anderson, onde este age de maneira bem rude com aquele, por motivos indecorosos e pelo fato de o capitão também assumir um papel (de certa forma tirana) oportunista. Esse mesmo conflito acontece com um outro personagem, porém as consequências são deveras divergentes. É aí que entra então a questão da luta de classes e do julgamento do comportamento humano.

"Apesar de toda a grandeza de nossa pátria, há uma coisa de que ela não consegue fazer, isto é, transferir totalmente alguém de uma classe para outra."

Além da perspectiva de Talbot, há também, em menor escala, o ponto de vista do vigário Colley, este tão discriminado pelos demais ocupantes do navio que chega a ser motivo de pilhéria e menosprezo, se não de indiferença. Por mais que muitas pessoas no navio se comportem de maneira liberal e não se sintam envergonhadas, o vigário demonstra uma certa fraqueza de espírito em paralelo a forma bruta, nua e crua de vivência durante a viagem à Austrália.

É diante do ponto de vista do vigário que percebemos a faceta da percepção do ser humano no que concerne em uma opinião equivocada, ou uma atitude tomada em benefício próprio, podendo ocasionar diferentes efeitos em diferentes almas. Isso, juntamente com alguns poucos diálogos entre Talbot, Colley e Summers, um dos oficiais, levantam reflexões refinadas, mas não tão complexas.

Afinal, tudo se encaminha para uma tragédia que choca só até certo ponto e que depois se torna também ponto convergente de interesses próprios. A natureza humana satirizada e pintada em relevo, tendo como alvo um bode expiatório para seu conforto e segurança de sua posição no mundo.

Leandro Pedrosa
Enviado por Leandro Pedrosa em 20/04/2022
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