"A Morte de Ivan Ilitch" mostra que viver é perigoso
(Disclaimer: há spoilers neste texto)
Imagine que tudo está indo bem em sua vida. Você é inteligente e tem uma posição familiar, social e financeira bem sucedida. Ajuda quando pode os parentes e amigos, faz caridade. Todos à sua volta o elogiam. Você orgulha-se da sua posição. Tem uma concepção otimista do mundo. Agora, imagine que, de repente, algo inesperado e totalmente fortuito ocorre em sua vida e tudo vira de cabeça para baixo. Todos os valores em que acreditava, o otimismo, a bondade, a justiça, a consideração da família e dos amigos, caem por terra.
Em "A Morte de Ivan Ilitch", Liev Tolstói faz esse impressionante estudo sobre a condição humana, de como estamos todos sujeitos a que um evento casual e inesperado qualquer possa mudar completamente nosso destino.
Ivan Ilitch é um juiz bem sucedido na profissão e tem vários amigos, com quem passa as horas de lazer jogando cartas. Sua vida social e familiar é bem estruturada, apenas empanada pelas intermitentes diatribes da sua esposa, que suporta resignadamente.
Tudo começa a desandar quando, na melhor fase de sua vida, recebe uma inesperada promoção. Ao acompanhar, todo feliz, uma reforma numa nova casa, propiciada por sua nova condição financeira, sofre um pequeno acidente, ao dar um passo em falso numa escadinha. Ao cair, apruma-se, mas bate o lado esquerdo do ventre na moldura de uma janela. De início, o acidente lhe parece banal, não há dores e tudo indica que ele não irá lhe causar maiores consequências. Mas, aos poucos e progressivamente, surgem dores no local afetado. As coisas pioram e as dores inexplicáveis, cuja origem real os médicos não conseguem descobrir, apesar dos intermináveis exames que são feitos, só aumentam e tornam-se constantes.
Na fase final de sua vida, tudo o que o entusiasmava o abandona, é dominado pela depressão e fica cada vez mais solitário em sua cama. Todos os seus amigos e familiares se afastam. Enraivece-se com todos eles, que considera uns hipócritas, que o bajulavam quando estava bem, mas que agora, quando mais precisa deles, o abandonam. E também não poupa os médicos, que acha que o enganam com falsas promessas enquanto usurpam seu dinheiro.
Chega à conclusão de que toda sua vida feliz fora, na verdade, uma grande farsa.
Na história, é notória a visão pessimista que Tolstói constrói sobre a natureza humana. Deve-se, no entanto, considerar o contexto espiritual em que ele se encontrava quando a escreveu. Naquele momento, o seu julgamento pessoal sobre os seres humanos estava contaminado pela mudança amarga e radical que promovia em sua própria vida, ao questionar-se sobre a sua posição confortável em relação às mazelas sociais que entrevia na sociedade. Herdeiro de uma família aristocrática e rica, cresceu no conforto. Depois de formar-se em Direito, em São Petersburgo, Rússia, dedica-se a uma vida libertina, dedicada aos jogos e às mulheres. Mas endireita-se, casa-se com uma jovem bem mais nova e com ela produz dez filhos. Após escrever as suas maiores obras, "Guerra e Paz" e "Anna Kariênina", passa a se questionar, ao comparar a própria vida tranquila de aristocrata e escritor de sucesso com a miséria que via nos cortiços de Moscou. Depois de quinze anos de felicidade conjugal, decide separar-se da família. Seguindo ao pé da letra os ensinamentos do cristianismo, doa os seus bens aos pobres e vai viver como um simples camponês. É nessa fase de transição de desilusão com a vida que escreve “A Morte de Ivan Ilitch”. Morre solitário, de congestão pulmonar, numa estação ferroviária, quando fugia para um mosteiro onde desejava passar o restante de seus dias.
Tolsltói, Liev. "A Morte de Ivan Ilitch" (seguido de "Senhores e Servos"). Tradução de Marques Rebelo. Rio de Janeiro: Ediouro; São Paulo: Publifolha,1998.