Tubos de ensaio, poesia, de Igor Fagundes - Resenha: Ricardo Alfaya

Título: Tubos de ensaio

Autor: Igor Fagundes

Categoria: Literatura Brasileira: Poesia

Editora: Penalux (Guaratinguetá-SP)

Ano da edição: 2021

Dimensões: 23 cm x 16 cm x 1 cm

Encadernação: Brochura

Páginas: 120 p.

 

Mais informações:

 

“Tubos de ensaio”, conforme o próprio título da obra já o denuncia, é um livro de poesia experimental. Só que não é apenas “mais um” livro de poesia experimental. Sim, um que subverte o próprio gênero e que realiza a experiência mais ousada e inusitada dentro dessa proposta.

 

Por outro lado, o nome “Poesia Experimental”, desde 1956, passou a ser usado para identificar a poesia feita em Portugal, sob a influência da poesia brasileira de vanguarda, isto é, o concretismo, o poema-processo, a poesia visual — todas, portanto, identificadas com a poesia experimental. Disso se depreende uma imediata característica desse gênero: ser conciso, sintético, minimalista.

 

De minha parte, a primeira vez que li sobre a associação entre método científico e poesia experimental foi numa entrevista concedida por Ferreira Gullar a uma revista literária chamada “Livre Espaço”, publicada talvez em Santo André (SP), durante os idos da década de 90, do século XX. Tenho ainda esse exemplar, mas só Deus sabe em que nuvem, em que pasta ou gaveta se esconde.

 

Não sei dizer se a percepção original dessa conexão entre poesia experimental e ciência vem do Gullar. Sei que a mim chegou pelas palavras dele. Seja como for, fez-me compreender melhor o movimento. O único senão foi que Gullar, nessa entrevista, criticou impiedosamente o gênero, inclusive por causa dessa intertextualidade entre poesia e método científico. Ele considerava um procedimento invasivo, inoportuno, inapropriado à poesia. Não é o caso de ficar discutindo aqui a figura e as ideias polêmicas de Gullar, no que concerne à crítica dele às artes contemporâneas. No entanto, acho interessante essa percepção dele, em que relaciona a poesia experimental com o discurso e o método científico, embora, reitero, não saiba dizer se ele foi o pioneiro nessa percepção.

 

Seja como for, o fato é que o caminho da intertextualidade, em poesia, tornou-se um dos aspectos mais perceptíveis da chamada “pós-modernidade”. A poesia experimental apropriou-se não apenas do discurso científico e de seu método, mas também, de outros discursos e códigos. Como exemplos, podem-se citar: a linguagem jornalística, a da publicidade-propaganda, a da fala política, a dos códigos de trânsito e muitas outras. E, claro, tem ocorrido com frequência a incorporação, pelos experimentalistas, da fala de outros poetas, artistas e pensadores. Como faz, aliás, abundantemente, Igor Fagundes, em “Tubos de ensaio”.

 

Na verdade, “Tubos de ensaio” é todo ele feito tanto em diálogo com os textos e métodos científicos quanto com os textos de outros poetas e pensadores. Contém ainda várias referências, como a forte influência, na obra, da linguagem das religiões de origem africana.

 

O volume possui apenas 120 páginas, mas que exigem um leitor atento e perpicaz. Por outro lado, sabemos: quanto mais um livro exige, mais ele dá em troca.

 

O livro combina poemas em prosa (apresentados nas páginas pares) com poemas em verso (nas ímpares). Sendo que os poemas do lado par dialogam com os poemas do lado ímpar. Ademais, a orelha direita do volume “puxa conversa”, com a orelha esquerda e vice-versa. Claro, os textos das duas orelhas são criações poéticas do próprio autor.

 

Porém, digo que Igor Fagundes inova, subverte a linguagem da poesia experimental porque, entre demais pormenores, o autor absolutamente não se preocupa em fazer poemas concisos ou minimalistas. Conforme mencionado acima, a concisão tem sido uma marca do gênero, até então, à exceção do Poema-Práxis e outras correntes experimentalistas, que se contrapuseram ao concretismo. No entanto, essas correntes não tiveram a mesma importância e repercussão internacional das formas fundadoras do experimentalismo: o concretismo, o poema-processo e a poesia visual (conforme bem observa Gilberto Mendonça Teles, em citação inserida por Antonio Miranda, em página dedicada à análise da poesia experimental, no Site do Escritor Antonio Miranda).

 

No caso de Igor, o escritor não se preocupa com a concisão. Sobretudo nos poemas em prosa, situados nas páginas pares, o autor se utiliza de um recurso de superposição dinâmica de termos, que, como num ensaio, giram em torno de um tema, examinando-o por múltiplos aspectos (poema "in vitro"?). Há de fato um clima geral de “laboratório”. Há muito, o laboratório é um elemento importante na arte. Não apenas no teatro e no cinema. De certo modo, um ateliê de pintura é um laboratório. Laboratório também é um estúdio musical, em que se produzem “ensaios” para “testar” composições. Porém, voltando a Igor, embora ele ignore o minimalismo, emprega uma medida: nenhum poema-ensaio passa de uma página.

 

“Cientificamente”, o livro atende a um método, que Igor explana num ensaio introdutório, da página 11 à 22. Mas o mistério da construção da obra se torna mais claro é nos diversos textos que compõem o posfácio. Por ali, ficamos sabendo de, pelo menos, três conexões que originaram o livro: 1) as aulas experimentais de Igor, na UFRJ; 2) um poema de Marília Garcia (Blog Companhia das Letras); 3) textos de teóricos que questionam “o que faz um poema ser um poema”. Igor exibe ainda reflexões de críticos que propõem o poema como ensaio (no sentido filosófico e literário). Por sinal, segundo Igor, o próprio poema de Marília Garcia seria um ensaio. O título do escrito de Marília: “O poema no tubo de ensaio”.

 

Outrossim, o livro se constrói a partir da pandemia. Qual a proposta de cura da ciência? Intubar o sujeito. Conforme mostra o autor, com a pandemia, o homem (que é um tubo) engole o tubo da ciência. O próprio doente se torna um tubo de ensaio. Igor explorará essa circunstância de tal maneira, que, no fim, o leitor vê tubos por todos os lados: a rua é um tubo, o poema vertical é um tubo; também, um tubo a ampola da vacina salvadora. Tubos de ar, tubos de gás, tubos da flauta. É tubo ou nada. Igor detecta a presença do tubo até no sinal matemático de igualdade (=). E toda matéria, seja física ou metafísica, se acha em ensaio, em experimentação, em circulação, nos tubos do mundo.

 

A capa, aparentemente, foi escolhida porque a palha lembra um tubo. Mas por que a palha? Poderia ser um conjunto de canudos plásticos, tubos de vidro reunidos, canos hidráulicos. Por que a palha? Queimei os tubos mentais, até me recordar de Obaluaê, o orixá da cura, cuja imagem surge sempre dançando, com o corpo coberto de palha. Isso explica também os delicados cordões nas cores marrom e amarela que envolvem o livro, na embalagem original.

 

Simbolicamente, o poeta, ao oferecer o livro, também expressa seu desejo de oferecer a cura para esse estado de pandemia generalizada. Estado esse que vai muito além do provocado pelo abominável vírus. Isto é, a cura está na vacina, a resposta acha-se na ciência, sim, mas está também no usar da magia, no aplicar a poesia. Pois a peste que se manifesta materialmente, é, antes de tudo, uma peste emocional. E aí a questão social é pungente. Igor não hesita em mostrar o estado de guerra social, étnica e sexual (discriminação das minorias), em que estamos mergulhados. O ódio adoece.

 

Por outro viés, o leitor deve estar pronto para receber textos que falam, muitas vezes, nas entidades e objetos de culto das religiões de origem africana: macumba, exu, pombagira e muitos outros termos são recorrências frequentes.

 

O fato é que há de um tudo nesse tubo que é o livro. São tantos aspectos. Trata-se de uma obra para se ler e reler com muito vagar. Por isso, recomendo “Tubos de ensaio”

para quem ame um livro bem pensado, bem organizado, questionador.

 

Por fim, importante aludir à bela homenagem que Igor faz ao poeta e crítico Marcus Vinicius Quiroga (1954-2020), um dos grandes nomes de destaque em nossas letras, violentamente colhido pela pandemia COVID-19. Na homenagem a Marcus, Igor Fagundes rende também, metonimicamente, seu tributo aos tantos grandes nomes de artistas e intelectuais que perderam a vida para o vírus exterminador. E o modo como homenageia Marcus (prefaciador do livro anterior de Igor) é extremamente original. Não o descreverei aqui, pois, sem o leitor poder ver como foi feito, será difícil entender e apreciar. Fica, apenas, o registro.

 

Em síntese, além de inovar a poesia experimental, Igor Fagundes realizou o livro mais consistente e expressivo, sobre a pandemia, dos que pude ler até agora. Obra fundamental para quem deseje compreender as atuais tendências da poética brasileira.

 

Igor Fagundes nasceu no Rio de Janeiro, em 1981. É professor, crítico literário e escritor. Doutor em Ciência da Literatura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde trabalha, ministrando aulas de Filosofia, Estética e Dança. É reconhecido como um dos mais importantes representantes da poesia brasileira atual, pelos poetas Marco Lucchesi e Antonio Carlos Secchin — ambos, da Academia Brasileira de Letras (ABL). Também, inúmeros outros escritores e críticos reconhecem o valor de Igor Fagundes, conforme o atestam os vários comentários ao final de “Tubos de ensaio”. Alguns outros títulos de Igor Fagundes: “Poética da Incorporação” (ensaio, 2016), “Pensamento Dança” (poesia, 2018), “Entre pares partilhas em dança & outros movimentos” (acadêmico, 2019), “Macumbança” (ensaio, 2020) — todos igualmente editados junto à Penalux. (R. A.).