Na secura do mundo

NA SECURA DO MUNDO

Miguel Carqueija

 

Resenha do romance de ficção científica “Mundo em chamas”, de J.G. Ballard. Editorial Bruguera, Rio de Janeiro-RK, sem data. Tradução de Laís Mourão. Título original norte-americano: “The burning world”, “copyright” 1964 do autor, publicado por acordo com Scott Meredith Library Agency, Inc., New York. Série Ficção Científica, 16.

 

Num entrecho extraordinariamente vívido e detalhista, Ballard conta a terrível história da progressiva desaparição da água potável da Terra e do colapso da civilização com todas as suas estruturas. Acompanhamos a saga de um homem comum — ou talvez incomum — o Dr. Charles Ransom, que luta para sobreviver num mundo tornado caótico, já que não há mais chuvas, nem nuvens, e os rios aos poucos estão secando, gerando assim uma onda de migrações, por fim em direção às praias, onde o governo norte-americano — que pouco tempo depois parece deixar de existir — realiza um trabalho de dessalinização da água marinha para que ela possa ser bebida.

A explicação desse colapso é engenhosa: “as águas de alto mar dos oceanos do globo, a uma distância de cerca de mil quilômetros do litoral, havia uma fina mas elástica camada mono-molecular, formada por um complexo de polímeros saturados em alto grau de agregação, gerada no fundo do mar devido às enormes quantidades de restos industriais descarregados nos portos oceânicos durante os cinquenta anos precedentes. Esta membrana resistente, permeável ao oxigênio, situava-se entre a atmosfera e a água, impedindo quase toda a evaporação da superfície da água para o espaço aéreo”.

Existem novelas brilhantes que falam no desaparecimento da água no planeta, como “A morte da Terra”, de J.H. Rosny-Ainè, e “Até os mares”, de H.P. Lovecraft. Este de Ballard é brilhante também, mas abandona a descrição global para se concentrar com Ransom e demais sobreviventes (incluindo uns leões do zoo desgarrados) lutando para se adaptatem a um ambiente de rios secos, dunas de sal, escassez de alimentos.

São muitos os personagens, alguns surgem, somem, reaparecendo depois no trajeto de Ransom. As ligações tornam-se líquidas num mundo seco, os conflitos são comuns e nem sempre compreensíveis. Os Quilter — filho e mãe —, Lomax, o Capitão Jordan, o irado Reverendo Johnstone, Catherine, Philip, pessoas arrancadas à vida comum e jogadas num pesadelo quase incompreensível, deixando para trás e para sempre o que era considerado o mundo normal.

E não se cogita o que ocorre no resto do mundo, pois não há mais comunicação.

Admiro a sobriedade da narrativa onde não existem heróis, nem mesmo o protagonista, mas apenas seres humanos com seus vícios e virtudes, que de algum modo precisam continuar vivendo.

 

Rio de Janeiro, 15 de janeiro de 2022.