NEY, UM CANTO DE LIBERDADE

NEY, UM CANTO DE LIBERDADE

Contar uma história é sempre perigoso, pois corre-se o risco de reduzir uma vida ou de enaltecê-la. Porém, uma biografia bem contada cumpre o papel de, ao mesmo tempo em que cativa o leitor, fazê-lo prosseguir na leitura, além repensar a própria trajetória – não como forma a despertar qualquer tipo de inveja, mas de maneira a refletir sua existência a partir das idiossincrasias humanas. Nesse caminho, vai “Ney – a biografia” (Companhia das Letras, 2021, 512p), do escritor e jornalista Julio Maria.

Fruto de cinco anos de trabalho, mais de 200 entrevistas e de sete longas conversas com o cantor, além de ligações diárias para Ney durante seis meses, a obra se inicia com a apresentação dos conflitos entre o cantor e seu pai. O autor tem como recurso evidenciar a sina de Matogrosso, em uma relação quase edipiana, aliado ao fato de que Ney desde cedo teve que encarar a solidão por se sentir rejeitado. Mas a obra vai além: apresenta cada passo da personagem desde quando sai de casa, aos 17 anos, passando por suas descobertas e aventuras sexuais, sua passagem como servidor da aeronáutica, suas idas e vindas entre São Paulo, Brasília e Rio de Janeiro, até chegar aos palcos com o “Secos e molhados”, para posteriormente seguir em carreira solo, tornando-se o grande artista que é. Não me parece haver um juízo de valor por parte do biógrafo, tampouco a pretensão de colocar o biografado no divã. O que se percebe é que Julio não poupa o cantor e nem ele mesmo o faz, ao revisitar as memórias desses 50 anos de carreira musical e oitenta anos de vida, completados em agosto de 2021.

Ney impressiona por sua determinação e força ao encarar um país eivado de repressão, em um contexto de censura e muito pudor que prevalecia nos anos 70 e 80. Mudou muito de lá para cá? Certamente, embora ainda vejamos, infelizmente, resquícios de perseguição de caráter ideológico para se controlar sexualidade(s), conservadorismo opressor que tem infelicitado milhões de pessoas pelo mundo. Muitas vezes cobrado por se afirmar gay, o cantor não cede. Diz que é um ser humano e que não vai se reduzir a um rótulo. A exaltação à sua liberdade é pauta recorrente, algo digno de quem pretende ter uma vida autônoma e de fato autoral.

Destaco os pontos que mais me chamaram atenção, não necessariamente por ordem de relevância. 1) É de se pensar que, com o corpo e a sanidade que Ney tem, não haveria abusado de drogas, mas esse é um aspecto que não se esconde na obra. 2) Ney sobreviveu a duas epidemias, a da aids e a da covid-19. Mesmo com a vida sexual agitada – com homens e mulheres que o desejaram e desejados por ele, com amantes marcantes, Zé, Cazuza e Marco de Maria, vítimas do HIV, – Matogrosso não se contaminou. 3) Ney é um artista que poucas vezes fez concessões ao mercado. Tomava/toma a frente de seus shows – da seleção das músicas à iluminação, passando pelo local em que ocorreriam/ocorrem. Vários desses espetáculos bancados pelo próprio cantor.

Um aspecto negativo da obra é o fato de Maria avançar rapidamente a partir da década de 1990, deixando o leitor curioso por detalhes decorridos a partir desse momento. É como se o que se passou nos últimos trinta anos não tivesse tanta relevância quanto os vinte anos anteriores. Atenção também às fotografias, que só são apresentadas no final da obra, podendo ter sido introduzidas à medida que os fatos fossem relatados, de modo a ilustrar o texto verbal.

Por fim, é preciso dizer que, desde quando tive a oportunidade de assistir a seus shows “Beijo bandido”, “Atento aos sinais” e à mais recente turnê de “Bloco na rua”, sacramentei a ideia de que dificilmente haverá figura mais ousada, inventiva e ativa do que Ney. Com oito décadas, mantém demasiada vivacidade, como seus próprios exames biológicos comprovam: está com 55 anos de idade corporal. Ler a biografia de Ney Matogrosso é uma oportunidade de escutá-lo de outra forma, haja vista que ele é muito reservado em entrevistas. A vida de Ney é sinônimo de resistência e de amor pela música.

(Texto publicado em "A União" em 11/02/2022)

Leo Barbosaa
Enviado por Leo Barbosaa em 11/02/2022
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