A dor de Santa Maria
(Texto publicado em A União no dia 28/01/2022)
A dor de Santa Maria
É preciso ter coragem para sofrer. E é necessário muito esforço para não ter vertigens durante a leitura de “Todo dia a mesma noite – A história não contada da boate Kiss”, de Daniela Arbex (Intrínseca, 248p.) A obra retrata o episódio que marcou a cidade Santa Maria, no Rio Grande do Sul, em 27 de janeiro de 2013. Arbex não apenas discorre acerca da segunda maior tragédia envolvendo fogo no Brasil (a 1ª é a do Gran Circus, 1961), como também deixa que o episódio histórico não se perca na memória coletiva. Em suas palavras: “A construção da memória do pior desastre provocado pelo homem na história recente do Brasil é necessária. Só assim o país poderá lidar de frente com as causas e as consequências de uma tragédia que envergonha pela matança e pela impunidade”.
Premiada escritora, Daniela escreveu outros livros marcantes, como “Cova 312”, “Holocausto brasileiro” e o mais recente “Arrastados: Os bastidores do rompimento da barragem de Brumadinho, o maior desastre humanitário do Brasil”. Porém, em “Todo dia...” vemos retratadas não só histórias de luto, ou seja, daqueles que ficaram, mas também daqueles que se foram. A repórter dá nome a várias das 242 vítimas do incêndio, além de personagens importantes, como médicos e bombeiros. O desespero e a esperança são protagonistas. De pressentimentos a ligações de madrugada. Das mais de 150 ligações para os celulares de quem estava na boate naquele momento até a tristeza de não ter sequer um caixão para velar seus mortos.
Ao longo da leitura, percebe-se que autora não explora a dor do outro de modo sensacionalista – a ela cabe o exercício de disseminar o grito sufocado de diversos pais, mães, avós, filhos, irmãos, namorados e namoradas que perderam seus amigos e parentes naquela madrugada de 2013. Creio ser um momento bastante oportuno para se fazer a leitura acerca desse episódio, visto que se passaram nove anos, e os responsáveis pela tragédia foram julgados e presos. É estarrecedor pensar que, com uma quantidade tão expressiva de mortos e reconhecidas as inadequações técnicas da boate, tenha demorado tanto tempo para que a justiça fosse feita. Alguns dizem que a justiça tarda, mas não falha, mas certamente a morosidade do processo foi uma falha para aqueles que perderam quem tanto amavam.
O livro nos ensina sobre amor, empatia, coragem e sobre a efemeridade da vida. Ensina também sobre solidariedade e sua falta, a partir de histórias de pessoas que culparam os pais pela morte de seus filhos. Dentre as motivações da culpabilização: a ruptura do cotidiano da cidade e o fanatismo religioso, o qual faz muita gente perder o bom-senso e a compostura diante da dor alheia. Falas como "você deve seguir em frente, o seu filho já está morto mesmo" ou "os verdadeiros culpados são parentes e as vítimas, se estivessem na igreja não teria acontecido aquilo".
Ao iniciar a leitura, impressionou-me o fato de a tragédia ter ocorrido há um tempo considerável, mas que, para mim, havia sido há pouco. Porém, conforme sugere o título do livro, é fato que se reitera, pois “um morto amado nunca para de morrer”, como disse o escritor moçambicano Mia Couto. Naquela noite, não foram pessoas que morreram. Foram sonhos incendiados, todo um projeto de vida, a alegria de quem se foi e de quem ficou. Que noites como essa não se repitam. Que cada cinza espalhada pelo vento percorra o mundo a fim de resgatar essa história – em respeito ao que denota esse holocausto contemporâneo. Que as cicatrizes de quem sobreviveu representem uma tatuagem a lhes dizer que a vida merece ser aproveitada da melhor forma. Que o fogo lhes tenha sido a travessia do inimaginável do melhor que está por vir.
Leo Barbosa é professor, escritor e poeta.