AS INTERMITÊNCIAS DA MORTE, José Saramago
Um amigo perguntou o que eu estava lendo e eu disse que “muita coisa desinteressante”. Depois concertei a frase e disse que estava relendo um romance do Saramago, autor português que gosto tanto quanto gosto de Fernando Pessoa. O tal amigo que não lê nada além das frases motivacionais das redes sociais disse “Saramago é velho, inofensivo e lembra um cágado”. Essa descrição parece coerente se o escritor estiver calado, do contrário, o poder corrosivo das palavras que ele profere te obriga rever suas primeiras impressões. Não é velho como coisa que não serve embora na foto tivesse 82 anos, não morreu pois é eterno; nem é inofensivo batráquio de água doce, mas dragão cuja língua inflamada, portuguesa, renova o sentido perdido das relações humanas.
O romance em questão que teve lançamento mundial no Brasil é AS INTERMITÊNCIAS DA MORTE, é um livro de 207 páginas denso. Nele, Saramago desarticula os pilares da civilização ocidental relatando a “inverídica porem certa” história de um país beneficiado com a interrupção da morte. Incertezas à parte, o medo da morte manipulado desde sempre dera origem a estruturas políticas que pareciam perpétuas e que, agora, agonizam. Estado e Igreja não são os únicos corpos que cheiram mal nesse país inventado e cada cidadão terá que conviver com a falência das funções de seus órgãos e a agonia de não ter fim o que já não tem utilidade.
Neste cenário apocalíptico, surge a impossibilidade do amor: a Morte, personagem principal, não consegue levar um certo musico e, intrigada pelas razões do seu fracasso, determinada em conhecer melhor aquele homem, se materializa num corpo comum não assustador e avança sobre o cotidiano monótono. O encontro pode mudar ou reverter tudo.
Aqui não existe saída, a vida continua circunscrita aos limites do medo. Ninguém vai morrer e, no entanto, todos já estão mortos. O prazer de ler um romance de Saramago, qualquer um da vasta obra, é igual a alegria de encontrar um conhecido nosso em meio a multidão inquieta de uma cidade qualquer em que nós estamos acostumados.