Lovecraft: raridades
LOVECRAFT: RARIDADES
Miguel Carqueija
Resenha da coletânea “O mundo fantástico de H.P. Lovecraft”, volume 2. Editora Clock Tower, Jundiaí-SP, 2020. Organização geral: Denilson E. Ricci. Tradução e notas: Daniel Iturvides Dutra, Guilherme Mello Sant’Ana, Marcos Almeida Pereira Júnior e Renato Sultana. Revisão e notas: José Geraldo Campos Trindade. Capa: Alexandre da Silva Costa. Prefácio: S.T. Joshi, Daniel Iturvides Dutra e Denilson E. Ricci.
Este volume é fruto de rogorosa pesquisa, resgatando textos onde Lovecraft, mestre do horror norte-americano, atuou como escritor-fantasma a serviço de autores em geral sem grande tarimba. Ele revisava, reescrevia textos ou aproveitava e desenvolvia as idéias básicas.
Lovecraft possuía uma elegância estilística inegável. Ele e outros autores desde o grande Poe tinham de fato estilo clássico, eis que hoje em dia até a literatura de horror cultiva baixarias, grosserias, como se vê em Stephen King. Convém alertar porém que Lovecraft era mórbido, obsessivo, nele a maldade aparece como a tônica universal e a humanidade como uma exceção da natureza e impotente diante das forças malignas. Ao que consta ele era ateu, daí a falta de esperança nas suas histórias.
A ÁRVORE DA COLINA (“The tree on the hill” (1934), tradução: Guilherme Mello Sant’Ana) – com Duane W. Rimel.
Aqui a fantasmagoria é representada por uma árvore avistada ao longe, isolada em uma colina, e a história é passada em 1938, ou seja, após a morte de Lovecraft.
Como é comum no estilo lovecraftiano a adjetivação é pesada. O personagem-narrador tem uma espécie de pesadelo provocado pela visão da árvore, como se um portal dimensional abrisse diante de seus olhos. “Pensei ver três olhos flamejantes no vazio mutante de um portal e gritei com medo indizível. Naquelas profundezas nocivas, eu sabia, espreitava a completa destruição, um inferno vivo pior que a morte”.
ATÉ OS MARES (Till a’ the sea, 1935). Tradução: Daniel Iturvides Dutra. Com Robert H. Barlow.
Esta história, muito vigorosa, é mais propriamente de ficção científica, de um tipo fatalista que faz lembrar “A morte da Terra”, do belga J.H. Rosny-Ainè, ou até “Fuga para parte alguma”, do brasileiro Jeronymo Monteiro. Evidentemente não é uma visão cristã. Nele o ser humano — e com ele todos os seres da Terra — é descartável e nem tem importância num imenso universo e no contínuo espaço-tempo.
A Terra lentamente se aproxima do Sol. O processo irá durar eras incalculáveis mas o resultado é que a temperatura vai aumentando, a água escasseando, os próprios mares esquentam, os povos migram na direção dos pólos.
“Por eras incontáveis, a aridez e as tempestades de areia devastaram todas as terras.” “O calor sempre presente, à medida que a Terra se aproximava do Sol, secava e matava com raios impiedosos.” “Então, finalmente, os oceanos se foram, e a água tornou-se raridade num globo árido, queimado pelo Sol. O homem, aos poucos, espalhou-se por todas as terras do Ártico e da Antártica.”
Em suma, uma agonia inexorável por milhões de anos, até chegar ao clássico “último homem” — aqui chamado Ull, no livro de Rosny-Ainè, Targ. Nos dois textos o desaparecimento da água determina o fim da humanidade. Não se cogitam viagens espaciais ou uma instância superior ao homem. Eu discordo da visão materialista de Lovecraft mas admiro a elegância do seu estilo que é primoroso mesmo em parcerias.
AS TRANÇAS DA MEDUSA (“Medusa’s coil”, 1930) – tradução de Guilherme Mello Sant’Ana. Com Zealia Bishop.
Narrativa na primeira pessoa, como é mais comum em Lovecraft (empatando aqui com Poe), onde um sujeito viajando de carro por alguma região dos Estados Unidos (o texto diz que ele ia em direção a Cape Girardeau, sul do Missouri), mas a dificuldade em encontrar o caminho, o cair da noite e a ameaça de tempestade o levam a pedir abrigo numa casa soturna perto da estrada, e cujo ocupante lhe conta uma história macabra de família — a intromissão, na vida de seu filho, de uma mulher sinistra, ligada a ritos blasfemos provenientes do Zimbábue. E nisso tudo acabam sendo citados elementos da mitologia de Lovecraft: até a cidade submersa de R’lyeh.
Tudo exagerado, a novidade é a mistura com a Medusa, figura horripilante da mitologia grega.
A EXUMAÇÃO (“The discinterment”, 1935) – tradução de Guilherme Mello Sant’Ana. Com Duane W. Rimel.
Este é um conto terrível sobre um homem atacado de lepra e que é confinado e submetido a medonhas experiências por parte de um cirurgião, supostamente seu amigo. Lembra qualquer coisa de “A ilha do Dr. Moreau”, de H.G. Wells. É uma narrativa para estômagos fortes.
AS DUAS GARRAFAS NEGRAS (“The black bottles”, 1926). Tradução de Marco Almeida Jr. Com Wilfred B. Talman.
Trabalho insólito sobre uma pequena aldeia assombrada por um pastor protestante pouco convencional e seu sinistro sacristão. Uma história que envolve aparentes pactos demoníacos e se afasta da mitologia cósmica de Lovecraft, mas possui o fatalismo trágico e tradicional das narrativas de terror.
Pelo menos, uma história onde o mal destrói a si mesmo. Falta um pouco de consistência ao enredo.
O HOMEM DE PEDRA (“The man of stone”, 1932) – tradução: Daniel Iturvides Dutra. Com Hazel Heald.
Entrecho desenvolvido a partir da descoberta, nas Montanhas Adironducks (estado norte-americano de Nova Iorque), numa cabana, de um cão e um homem transformados em pedra — o cão do lado de fora e o homem dentro da cabana.
A história fala de uma vingança terrível que acaba se voltando contra o psicopata.
Como sempre são terrificantes os contos de Lovecraft.
O HORROR NO CEMITÉRIO (“The horror in the Burying-Ground”, 1935) – tradução: Daniel Iturvides Dutra. Com Hazel Heald.
Essa narração de alguma forma consegue ter alguma coisa de pantomina, o que não é típico de Lovecraft. Fala de um caso clássico no gênero horror: o enterramento de pessoas vivas, como já visto em Edgar Allan Poe (“A queda da casa de Usher”, “O enterro prematuro”). Aqui, fora do padrão lovecraftiano, há muito diálogo, num ambiente meio caipira. Como em outros textos do autor fala-se de lugares onde, devido à presença do mal, as pessoas que moram perto evitam passar.
O OCEANO NOTURNO (“The night ocean”, 1936) – tradução: Guilherme Mello Sant’Ana. Com Robert H. Barlow.
Esta narrativa na primeira pessoa é comprida, muito lovecraftiana, com parágrafos enormes, e com brilhantismo coloca o leitor perante aquela sensação do indizível, do horror inominável e extraterrestre. A riqueza de detalhes é obsedante e alucinatória. No entanto pelo fim das contas não ocorre revelação alguma quando já se esperava que o Grande Cthulhu emergisse das águas.
O PRADO VERDE (“The green meadow”, 1919) – tradução: Daniel Iturvides Dutra. Com Winifred V. Jackson.
História da juventude de Lovecraft, fala de um meteoro caído no Maine, EUA, contendo uma narrativa escrita em grego clássico (!). O narrador conta uma situação trágica e fantástica ao mesmo tempo, sem verdadeira explicação. Parece a imaginação de alguma espécie de “hades”.
O ÚLTIMO TESTE (“The last test”, 1927). Tradução de Guilherme Mello Sant’Ana. Com Adolphe de Castro.
Médicos loucos são um prato cheio da ficção científica e do terror. Aqui o Dr. Clarendon, diretor-médico da Penitenciária de San Quentin, um bacteriologista que estuda a “febre negra”. Clichê habitual de Lovecraft, o mal e o desconhecido são provenientes de locais inóspitos e misteriosos da Ásia e da África; do norte do continente africano vem o enigmático personagem Surama. Mistérios, perversidades ocultas, sucedem-se numa narrativa exagerada, mas atraente.
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O volume ainda inclui o poema “A Howard Phillip Lovecraft”, por Clark Ashton Smith, escrito seis dias após a morte do homenageado. Ainda temos um trecho descartado do conto “A sombra em Innsmouth”, sobre uma das cidades lovecraftianas fictícias, e uma carta de Lovecraft a Wilfred B. Talman.
Rio de Janeiro, 21 de setembro a 17 de outubro de 2020.