Uma análise comparativa entre Dom Quixote e o Poço (Netflix)
Desde a época de seu lançamento, a obra Dom Quixote conquistou muitos leitores e brincou com o imaginário das pessoas que tiveram contato com o livro.
Ele traz em si inovações em vários aspectos: no estilo de narração, na introdução do leitor e da leitura como parte da obra, e mesmo não sendo tão novidade assim, a paródia também encontra espaço quando se fala sobre as histórias de cavaleiros medievais no livro.
São muitas as aventuras em que Dom Quixote se encontra com seu fiel escudeiro Sancho Pança. Um ponto que quase sempre é levantado quando analisamos esse clássico é o contraste da razão versus loucura presente na obra.
De muitas produções culturais que beberam da fonte da obra canônica de Cervantes, uma recente é o filme O poço, de 2019, produção Netflix.
O filme fala sobre a degradação humana e o desperdício de comida, é uma dura crítica ao nosso consumo não consciente de alimentos. A narrativa é em formato de fábula, e logo na primeira cena do filme nos damos de cara com o personagem principal, Goreng, que fisicamente assemelha-se muito com a figura de Dom Quixote.
Ali, para os leitores mais apaixonados da obra, uma chama se acende e é impossível não pensar no Cavaleiro da triste figura.
Na trama, as pessoas se internam por vontade própria em uma suposta clínica de reabilitação alimentar para aprenderem a ser mais sustentáveis, e podem levar apenas um objeto para a ‘cela’.
Goreng opta por levar um livro, que não por coincidência, vem a ser um exemplar de Dom Quixote. No livro, o cavaleiro de triste figura ficou louco de tanto ler, mas em muitos momentos aparece um questionamento (pelo menos para nós, leitores) se ele é mesmo louco.
Embora leiamos que ficou louco de tanto ler, um exemplo no livro que põem em dúvida se realmente lhe falta sanidade ou se é o mais são, é no capítulo em que se encontra com a Pastora Marcela, que optou por viver livre, e é acusada por alguns homens de ser a culpada pelo suicídio de um homem apaixonado por ela (a culpa de um ato alheio recaindo na mulher e na sua beleza, Cervantes nunca foi tão atual).
O cavaleiro defende Marcela, é o único a ficar do seu lado. Quão louco esse ato o faz ser? Já na obra da Netflix, a sanidade de Goreng também é questionada.
Há uma personagem feminina que abre esse aspecto no filme, Miharu. Muito provavelmente inspirado pelo livro que levou para cela, ele mostra uma grande dose de coragem (ou seria loucura?) tal como Dom Quixote após ler tantos livros de cavalaria e parte para os andares mais baixos do confinamento (afinal o centro de reabilitação do filme na verdade é uma prisão) a fim de salvar a vida da filha de Miharu, que lutava para sobreviver e para cuidar da filha, mas que veio a falecer; uma relação com a pastora Marcela pode ser percebida aqui, mesmo que seja na figura feminina que possui força e é apoiada, admirada e mesmo ajudada por Goreng, o cavaleiro da triste figura do filme.
A viagem que ele emprega para chegar aos andares mais baixos só pode ser acreditada se olharmos pelo aspecto da loucura, ou da bravura, pois a morte é quase certa. Tal como no livro, Goreng não emprega essa viagem sozinho.
Ele convoca um parceiro para ajuda-lo em sua empresa, Baharat, que é seu escudeiro final até o final da jornada, apoiando-o em tudo o que se fizer necessário, tal como Sancho Pança o fez com Dom Quixote.
Ao terminarmos o filme, percebemos que carregamos a obra de Cervantes desde a primeira cena, considerando a referência óbvia do livro que é escolhido por Goreng e por sua aparência física.
Além disso, a história do filme (além da moral sobre alimentação sustentável) fala sobre uma viagem-aventura louca na qual a honra (para salvar a filha de Miharu) ou a loucura é (ou seriam são? Uma elimina a outra?) norteadora (s) para a viagem, conceitos observados no clássico de Cervantes.