Wilde: o fantasma de Canterville

WILDE: O FANTASMA DE CANTERVILLE
Miguel Carqueija

Resenha da coletânea “O fantasma de Canterville e outras histórias”, de Oscar Wilde (L&PM Pocket, Floresta-RS, 2002. Tradução: Beatriz Viegas Faria, Cristiano Floriano Almeida, Marisa Gershenson, Daniel S. Duarte, Adriana Scolari Costa, Flávio Andrade, Maria Cristina Schleder de Borba, José Paulo Golob e Paula Rich Garcia. Capa: Ivan Pinheiro Machado sobre detalhe de “Louis Signorino sentado em seu gabinete” por Gustave Bourgain, na Galeria George, Londres — Inglaterra.

Esta coletânea apresenta oito contos do genial Oscar Wilde, sendo que quatro também comparecem no volume dos contos de fadas.
“O CRIME DE LORDE ARTHUR SAVILLE” é uma história policial patética e praticamente irreconhecível sobre um aristocrata inglês, noivo de uma jovem prendada, que se julga preso a uma maldição revelada por um quiromante: nas linhas de sua mão revelava-se que iria praticar um homicídio.
Lorde Arthur fica então obcecado com a ideia de que precisa praticar esse crime antes de se casar, para não prejudicar sua futura esposa. E tem de escolher qualquer pessoa, mesmo inocente. O pior de tudo é que ele julga estar sendo correto, agindo honestamente.
Não consegui gostar desse conto, que me pareceu bastante inverossímil. Uma pessoa sensata simplesmente não faria caso da revelação do adivinho.
O AMIGO DEDICADO – (comentário escrito para a resenha de “Histórias de fadas”; nesta outra coletânea aparece como “O amigo devotado”) O pintarroxo conta uma história “com moral” ao Ratão D’Água e este não a entende. A história em si é sobre dois seres humanos que mantém um estranho relacionamento. Um é rico e o outro é pobre, e estranhamente é o rico que explora o pobre apresentando-se porém como seu grande amigo. A cara-de-pau de Hugo, o moleiro, é tão grande que irrita os leitores, e o mesmo se pode dizer do pobre Hans, de sua passividade diante dos abusos do outro, ainda por cima crendo ter em Hugo um verdadeiro amigo. O exagero do conto porém é bem proposital e perfeitamente inteligível para as crianças. Para resumir Hugo nada sabia dar a Hans, mas levava suas flores e frutos e ainda o explorava de diversas maneiras. É o verdadeiro protótipo do espaçoso e do falso amigo.
O FANTASMA DE CANTERVILLE – Quando comecei a ler lembrei-me de conhecer a história de uma peça teatral exibida na televisão — creio que na extinta TV Tupi — nos velhos e idos tempos em que se podia assistir teatro na televisão! Era a história deliciosa de um fantasma azarado que assombrava uma mansão rural inglesa chamada Canterville, e o que acontece quando uma família norte-americana toma posse do local. O casal, o filho mais velho, a adolescente e o casal de pestinhas.
O fantasma simplesmente não é respeitado, ninguém tem medo dele e todos (com exceção de Virginia, a jovem inocente) zombam e aprontam com ele; principalmente as crianças que armam terríveis gozações e armadilhas que desesperam o espectro.
Lembro-me da peça teatral como uma comédia. O conto é uma verdadeira obra-prima.
O JOVEM REI (comentário escrito para a resenha “O fabulista Oscar Wilde” sobre a coletânea “Histórias de fadas”, onde o mesmo conto aparece) – Este conto é de uma filosofia incrível, ao mostrar um príncipe em vias de ser coroado rei e que tem vários sonhos sucessivos, visões que lhe mostram a pobreza e o sacrifício do povo, que sustentam o luxo da corte (o Brasil já não é monarquia, mas... sentem a semelhança?). Um tecelão, por exemplo, diz ao jovem Rei: “Na guerra os fortes fazem escravos dos fracos, e na paz os ricos fazem dos pobres seus escravos. Temos de trabalhar para viver, e eles nos dão salários tão mesquinhos que morremos. Trabalhamos para eles o dia inteiro, e eles acumulam ouro em seus cofres, enquanto nossos filhos definham antes do tempo e os rostos dos que amamos tornam-se duros e maus.”
O pior porém é que quando o Rei, motivado pelos sonhos, resolve abandonar toda a pompa e viver de forma simples, encontra incompreensão no próprio povo, como um homem que lhe diz: “Trabalhar para um amo é amargo, porém não ter um amo por quem trabalhar é ainda mais amargo. Pensais acaso que os corvos irão alimentar-nos?”
O MILIONÁRIO MODERNO — Certo Huguie Erskine, sujeito pobre, mas apaixonado por Laura Merton — e sua posição financeira não lhe permitia casar-se — vai visitar seu amigo, o pintor Alan Trevor. Vendo um velho mendigo esmulambado servindo de modelo para um quadro de Trevor — isto é, um quadro apresentando um mendigo — Hughie, compadecido, e apesar de ser ele próprio pobre, dá uma esmola ao indigente. Este gesto de caridade irá mudar a sua vida para sempre.
Oscar Wilde possui um raro senso do patético que torna suas histórias diferentes e emblemáticas.
O PESCADOR E SUA ALMA (comentário, também escrito originalmente para a obra “Histórias de fadas” onde também aparece) – Existe um filme brasileiro com este título e deve ser baseado no conto de Wilde. É um conto muito estranho sobre um jovem pescador que se apaixona por uma sereia e vai viver com ela no fundo do mar. Antes, porém, separa-se de sua alma, que por estranhos motivos era um estorvo para a união. “A Gente do Mar não tem alma”, alega a sereia.
É esdrúxula a idéia de uma alma que é mandada embora pelo seu “dono” como se não fossem uma coisa só, e sai pelo mundo vivendo aventuras até convencer o pescador, com estratagemas, a segui-la e abandonar a sereia. É o conto de que menos gostei e de mais difícil exegese.
O RETRATO DO SR. W.H. – Um relato muito estranho sobre uma longa discussão e investigação a respeito da “musa inspiradora” de Shakespeare que estaria oculta nas entrelinhas de seus sonetos e que seria um jovem ator chamado William Hugues. A investigação das pistas aparentemente deixadas pelo literato faz lembrar Edgar Allan Poe e seu saboroso conto “O escaravelho de ouro”; “O retrato do Sr. W.H.” chega a ser uma história policial mas com desfecho desconcertante. O Erskine que aparece não é o mesmo de “O milionário modelo”.

Rio de Janeiro, 9 a 14 de agosto de 2019.