A Hiper-religiosidade Contemporânea

O texto é uma publicação da OIKOS Editora com sede em São Leopoldo-RS, 2011 contendo 128 páginas no formato 16X23cm distribuídas em oito cadernos agrupados em brochura e catalogado no ISBN para o assunto “Religiosidade”.

O autor, Darlyson Feitosa é apresentado a partir da sua formação em Teologia, Metodologia do Ensino Superior e Ciências da Religião, com metodologias próprias de abordagens inter e neotestamentárias destacando-se a Literatura Apocalíptica Judaica, Grego Bíblico, Teologia do Novo Testamento, Missiologia, Evangelho de João, Epístola aos Hebreus e Primeira Epístola de Pedro.

Há uma singela dedicatória a duas hipermulheres, Cristina e Amanda, respectivamente esposa e filha. Nisso, um gesto de delicadeza do autor em contraste com a severidade e acidez da crítica feita à igreja institucionalizada, no que é também seguido pelo seu prefaciador.

Há que se destacar do prefácio a declaração de que ambos se consideram mutuamente “apóstatas ou hereges” do território eclesiástico cristão tradicional, particularmente do evangélico, mas não apóstatas ou hereges da fé.

Ainda no prefácio, o autor é intencionalmente alinhado a duas personalidades famosas, Giordano Bruno e Kierkgaard, os quais pagaram o preço da impopularidade, da antipatia e do ostracismo por causa da sua postura crítica ao “status quo” da época. Diante disso, a intenção de alinhar o autor às personalidades mencionadas soa como um elogio à pretensão da obra como um todo, ainda que possa também ser interpretado como uma condenação ao ostracismo à semelhança daqueles.

Não posso concordar com o prefaciador ao insistir no “estilo de escrita elegante, sem preciosismo” do autor. Na verdade, há uma certa elegância na escrita, porém, todo o texto encontra-se eivado de um preciosismo que serve mais ao interesse de mostrar conhecimento, como adiante se verá, do que argumento para apresentação da tese proposta.

O Hipertemplo

Para introduzir a sua obra o autor a define com o texto que segue:

“É dentro desse espírito do híper que a hiper-religiosidade se encontra...A hiper-religiosidade se expressa do meio do hipertemplo, que por sua vez abriga o hiperfiel, a hiperliturgia. Os vocábulos podem mudar, mas o sentido é homogêneo: super-religiosidade, megaigreja, megatemplo, spercrente, megaculto, megacelebração.” (p. 15)

Com uma citação atribuída a Nietzsche, o autor delineia o propósito do primeiro capítulo que é definir, pela arquitetura, a sede pelo poder. Na esteira dessa intenção, as referências à suntuosidade do templo de Salomão, do templo de Herodes e a alegoria do templo visualizado profeticamente por Ezequiel surgem como modelo da preocupação com a suntuosidade do espaço para o culto.

Segue-se a isso uma lista não pouco significativa da megalomania caracterizada na identidade das várias denominações cristãs no Brasil e que, ao contrário do que se pretende, torna o texto apenas uma peça descritiva da arquitetura religiosa e da megaigreja mencionadas na definição inicial.

Há que se considerar que o autor lança mão da arquitetura suntuosa do templo de Salomão para justificar a religiosidade moderna por meio do hipertemplo igualmente suntuoso desconsiderando a abissal distância existente entre ambos os conceitos. Lá, certo ou errado, a grandeza e a suntuosidade do templo tinham tudo a ver com o conceito que os judeus possuíam de IAHWEH, enquanto que na modernidade o conceito é de suntuosidade pura e simples, numa demonstração clara da sede pelo poder, aí sim, perfeitamente alinhado com a intenção do autor. A afirmação de que o hipertemplo retratado nas catedrais que ocupam espaços públicos privilegiados surge como um alerta ao Estado de que o Sagrado está presente, há muito que caiu no esquecimento ou descaso da sociedade moderna e pós-moderna.

Não obstante o arrazoado e o preciosismo demonstrados no raciocínio e na apresentação de um farto, porém, pretenso conhecimento histórico de lugares, monumentos ou templos do Velho Mundo, da outra América e também do Território Nacional, o primeiro capítulo apresenta apenas uma descrição bastante crítica da arquitetura religiosa de todos os tempos, mais propriamente, da nossa pós-modernidade.

O HIPERSACERDOTE

Aparentemente estranho comparar o termo “hipersacerdote” à atuação das duas personalidades destacadas, quais sejam, Simão Macabeu e Jesus Cristo. Com todo respeito, conservada a definição etimológica para o termo “sacerdote”, aliás, mais um preciosismo do autor, a atuação social, política e espiritual de ambos são diametralmente opostas e irreconciliáveis.

Ao considerar a formação do hipersacerdote, afirma o autor:

“Há muito se detecta uma baixa produção teológica entre os lideres eclesiásticos...Essa baixa participação do sacerdote no fazer teologia implica uma superficialidade teológica entre os pregadores cristãos.” (p. 37)

Tal afirmação parece reduzir o conhecimento teológico do hipersacerdote à “cultura de almanaque” com a profundidade de um pires, mas aqui, parece confuso acompanhar o raciocínio do autor acerca da validade da “especialização” teológica ou da cultura tecnológica do líder eclesiástico para fazer frente às exigências da sua própria comunidade.

Como intermediador da fé, tanto faz o conhecimento multifacetado ou concentrado em uma determinada área, desde que seja ele, o hipersacerdote, o centro das atenções e da própria liturgia perante os fiéis. Numa palavra, o culto ou a celebração litúrgica não podem acontecer e, caso aconteçam não serão validadas sem a presença do hipersacerdote.

Isto ocorrendo, e de fato acontece, o líder eclesiástico assim travestido incorre em pelo menos dois perigos. São eles: a sedução do estrelismo e a sedução do neonarcisismo que se encontram sempre presentes, à espreita e bastante próximos da sua vaidade pessoal. Uma vez confirmados, ambos os perigos obrigam-no a manter o seu “status” a ponto de também obrigar o diabo a manter-se na ativa para que o poder, a influência e a atuação do hipersacerdote sejam evidentes e colocados à prova constante e incessantemente, acirrando a concorrência que existe entre as muitas celebridades que disputam espaço no meio eclesiástico. Na opinião desse resenhista, no meio dessa acirrada concorrência até o diabo precisa de holofotes para tornar evidente a sua atuação na sociedade!

O Hiperfiel

Em meio a essa concorrência e disputa entre as celebridades, o hipersacerdote depara-se também com o assédio de outro personagem igualmente importante nessa relação, ou seja, o hiperfiel. Este é senhor absoluto das suas decisões no que respeita às suas escolhas em termos de religiosidade. É ele, e apenas ele quem decide se vai permanecer ligado à comunidade onde esteve durante anos, ou não. Tudo dependerá da sua própria conveniência em termos de doutrina, comportamento, liderança, liturgia, oportunidades e o que mais lhe for conveniente.

Na relação indivíduo-comunidade, o hiperfiel é um cliente bastante exigente, razão porque o hipersacerdote precisa se esforçar, e levar a instituição também a se preocupar com a preservação do cliente em sua comunidade não permitindo que ele migre para outra comunidade por julgá-la mais conveniente, ou inicie a sua própria à sua conveniência.

Neste sentido, o hiperfiel é um perfeito consumista e o seu interesse maior é ver saciada a própria sede de consumo tendo ao seu alcance produtos que sirvam, ao menos para demonstrar a sua pseudo-religiosidade. Qualquer novidade de cunho teológico será por ele abraçada, pois que o seu coração insaciável encontra-se sempre à procura de novidades, o que produz a superficialidade da fé supostamente existente e fundada na doutrina rasa onde, à semelhança dos samaritanos na sua origem, torna-se possível acender uma vela para Deus e outra para o diabo considerando que o trânsito entre o sagrado e o profano são resultados da escolha impudente do hiperfiel.

A Hiperliturgia

O autor atribui a Robinson Cavalcanti a seguinte citação utilizada para introduzir o último capítulo do seu livro:

“O culto espetacular é a expressão litúrgica da religião de resultados.”

A bem da verdade, a proposta deste capítulo é oferecer o elo de ligação entre o que se requer do hipersacerdote para satisfazer o hiperfiel ou, talvez apenas para atraí-lo ao hipertemplo por meio do megaespectáculo às vezes circense com malabarismos, contorcionismos, palhaços de púlpito, música estridente e carente de reverência para a celebração chamada cristã.

A pregação bíblica teologicamente estruturada não mais ocupa o espaço proeminente na liturgia do culto. Aliás, a própria expressão “culto a Deus” devidamente compreendida como adoração ao Eterno, ao Soberano Senhor, foi substituída por “celebração” onde o hiperfiel é quem julgará se foi boa ou não. Será ele, o hiperfiel, que dará o veredito à celebração acerca do “show” do domingo à noite.

Não se concebe em nossa pós-modernidade a realização de um culto a Deus sem o estardalhaço da música equivocadamente identificada como “louvor”, porém, destituída de fundamentação bíblico-teológica minimamente aceitável, repetitiva e de gosto musical essencialmente duvidoso. Como bem disse o autor em se tratando da hiperliturgia midiática, “a liturgia expressa uma realidade que carece de sentido”, e o mesmo ocorre com a pregação cujo eixo deixou, há muito, de ser a Palavra ou a Escritura e foi substituída pela experiência do fiel que, sem titubear se auto intitula depositário da revelação de Deus que não pode ser contestada e tampouco contrariada.

Ao finalizar o trabalho, destaco a expressão utilizada pelo autor à p. 122 referindo-se ao cenário descrito em todo o livro – “um furdunço socioreligioso”. De fato, a contemporaneidade religiosa não tem muito ou, quase nada a oferecer para o indivíduo que simplesmente quer adorar e servir a Deus.

Ao ler a obra resenhada perguntei a mim mesmo: “Onde se encontra o indivíduo que deseja expressar-se como pessoa transformada pelo Evangelho, realmente convertido e devotado à adoração devida a Deus nos termos das Escrituras? Não o encontrei em nenhum lugar do trabalho, embora não tenha sido esta a intenção do autor, ou seja, ressaltar e reafirmar o sentido e o conceito da verdadeira adoração a Deus.

Por esta razão, considero que a catalogação para o verbete “religiosidade” está equivocada devendo ser alocada para o assunto “Sociologia da Religião” vez que toda a discussão conduz o leitor à compreensão do comportamento de indivíduos e instituições na sociedade por meio da sua concepção religiosa.

Enfim, o autor apresenta a superficialidade religiosa com aparência de profundidade exegética, a meu ver, eivada de preciosismos e uma certa presunção acadêmica incrustrada à p.17 da Introdução onde afirma em meio a alguns adjetivos, que a obra pretende mesmo alcançar “aquele que poderia estar na academia mas não pode...”

Noutras palavras, segundo a minha particular compreensão, o autor estaria dizendo ao leitor: “Olha, eu estive na Academia, portanto, estou plenamente habilitado para interpretar os fatos aqui relatados e passo a escrever sobre eles em linguagem acessível para que você também possa compreendê-los.” Não seria isso correr o risco da “sedução ao neo-narcisismo?”

Bem, confesso ter sido difícil concluir a segunda leitura da obra para me aventurar nesta resenha, porém, uma vez concluída a leitura e a resenha, o exemplar retornará para a estante, pois não me é recomendável tê-lo à minha cabeceira.

Oniel Prado

Inverno de 2021

Brasília - DF