As baleias do Saguenay

AS BALEIAS DO SAGUENAY
(resenha do livro de João Batista Melo)

Miguel Carqueija

Editora Rocco Ltda., Rio de Janeiro, 1995. Preparação de originais: Elisabeth Lissowsky. Revisão: Walter Veríssimo e Wendell Setúbal. Foto da capa: João Batista Melo.
Coletãnea de contos.

O CAMINHO DAS ÍNDIAS

O primeiro conto deste simpático volume passa-se num mundo alternativo, narrado na primeira pessoa por um dos marinheiros da expedição de Cristóvão Colombo. Num clima de puro terror ele conta de sua oposição aos planos do almirante, enquanto as caravelas singram em direção às novas terras, cercadas por monstros submarinos de longos pescoços. O protagonista sabe que Colombo os viu, embora negue a sua existência. O terror existe, os monstros existem — esta é a premissa básica da história.
Melo logrou aqui uma espécie de inversão do racional, numa pequena obra-prima do terror.


AS BALEIAS DO SAGUENAY

Uma história primorosa e sentimental, narrada em estilo escorreito e sóbrio por este que é um dos autores mais seguros da literatura fantástica brasileira.
Como no conto inicial a narrativa flui na primeira pessoa. Um homem no fim da vida, atingido por doença terminal, desaparece de casa deixando um bilhete: “Não se preocupem comigo. Estarei bem onde estiver. Vou me encontrar com um sonho.” E seu filho faz o possível para segui-lo. Tudo o que o velho quer é morrer junto das baleias do Rio Saguenay, no Canadá, elas que também estão condenadas, esterilizadas pela poluição. É um conto que, dentro da narrativa enxuta e simples, atinge um alto grau de poesia.

FC

Melo incursiona aqui — o que não é habitual nele — nos reais domínios do gênero ficção científica, com um personagem que se auto-intitula escritor dessa categoria, a discorrer sobre as histórias que cria, com seus clichês e suas falácias. Até chegar ao desfecho surpreendente e condizente com a trama.

RETRATOS DE UMA PAISAGEM

Estamos diante de uma metáfora sobre a intolerância e a xenofobia. Numa estranha ilha a população se revolta contra estrangeiros de fala espanhola porque um deles matou uma mulher. Logo um turista que nada tem a ver com o caso passa a ser perseguido de maneira implacável e absolutamente desprovida de diálogo. O entrecho é angustiante até chegar a um desfecho surrealista.

A MOÇA TRISTE DE BERLIM

O que parece à vista do título um entrecho romântico revela-se afinal uma surpreendente história de “loop” temporal, envolvendo um terrorista que viaja para o Rio de Janeiro a bordo do dirigível Hindemburg, que ele pretende explodir após o pouso, desacatando a ditadura de Getúlio Vargas. Há uma série de ressonâncias históricas daqueles tempos de repressão: “Deixava-me levar de volta ao Rio, de encontro às lembranças de meu irmão torturado pela polícia de Getúlio, de Graciliano preso na Ilha Grande, Prestes cativo em algum canto do país, sua mulher entregue aos nazistas alemães. Havia Pagú, Pedro Ernesto, Agildo Barata.”
O conto consegue terminar com um “grande final”, realmente marcante e inesperado.

DEPOIS DO CREPÚSCULO

Como todas as obras deste livro, esta começa com uma citação e por sinal muito bem escolhida, de Graham Greene: “Nos pesadelos sabemos que a porta do armário vai abrir-se, sabemos que o que surgirá é horrível, mas ignoramos o que será...” Segue um entrecho de fantasmagorias domésticas que deixam saudades quando faltam. Mais uma vez Melo demonstra habilidade em lidar com o insólito a partir de umd esvio do normal — como aliás fazia Poe.

O HOMEM QUE FRAUDAVA LATAS

Uma história de crueldade, a partir de uma habilidade extravagante e usada para o mal. O enredo em si é inverossímil mas contado de forma competente. Pena que a narração sem diálogos e conduzida em tom distanciado não estimule o interesse do leitor. Tudo gira em torno de um único personagem sem nome chamado apenas de “ele” — que sabe abrir objetos, colocar coisas dentro — como besouros dentro de uma tangerina — e fechá-los de maneira imperceptível. A partir daí passa a envenenar recipientes de remédios e produtos alimentícios, chantageando os fabricantes e recebendo altas quantias por vias misteriosas, para não prosseguir sua nefanda atividade. Como o texto não entra em detalhes somos obrigados a crer que ele conseguira fazer tudo isso sem ser preso.
Não é o melhor conto do livro mas a qualidade do texto do autor salva a pátria.

A LANTERNA MÁGICA

Penetrando decididamente no surrealismo, João Batista Melo conta a história de uma jovem apaixonada por filmes e que desaparece misteriosamente na última sessão do cinema tradicional que fôra vendido e ia ser demolido. Esta é decididamente uma história de “quinta dimensão”, de “além da imaginação”, de “zona do crepúsculo”, onde a realidade se funde com a fantasia.

OS CAMINHOS DO VENTO

Conto impressionante, num clima que faz lembrar a atmosfera sufocante de “X-Filles”. Terror e suspense, o clima de “teoria da conspiração” e a sensação de impotência diante da abertura da Caixa de Pandora, tudo isso faz de “Os caminhos do vento” uma história memorável.

UMA VOZ

Encerrando o volume temos uma história de ficção científica espacial, mas que mesmo em meio ao ambiente clássico futurista apresenta o desvio da realidade, com um astronauta solitário (descontando os companheiros em hibernação) recebendo sistematicamente a mensagem misteriosa de uma mulher também solitária em algum ponto do espaço. Ele não podia responder e nem localizar a dona da voz que chamava através da imensidão do Cosmos.
O final, porém, é um tanto decepcionante, ao desviar o assunto principal.

Rio de Janeiro, 5 a 18 de janeiro de 2007.