Resenha 'Quarto de Despejo': Da Favela para o mundo-Carolina Maria de Jesus

Quarto de Despejo: Da Favela para o mundo

JESUS, Carolina Maria de. Quarto de Despejo.São Paulo: Ática, 1999.

“Quando estou na cidade tenho a impressão que estou na sala de visita com seus lustres de cristais, seus tapetes de viludos, almofadas de setim. E quando estou na favela tenho a impressão que sou um objeto fora de uso, digno de estar num quarto de despejo.” (p. 37)

Não há como ler Carolina de Jesus sem adentrar nas sutilezas de suas palavras, nem tão pouco debruçar-se sobre sua escrita sem se desnudar e ser despejado em um mundo rejeitado pelo outro, e repleto de coisas, sentidos, sentimentos e palavras. Palavras que descrevem e que carregam o fardo de existir e de serem riscadas em poesias famintas de justiça e transpassadas de esperanças. Assim, como também, não é possível ler este livro diário sem o sentir a cada página, seja no gosto amargo e amarelo que deixa na boca, seja em nossas entranhas corroídas pela ânsia da fome e descasos agora escancarados pela autora.

Carolina nos abre a porta de um lugar repleto dos dejetos de uma sociedade hipócrita e descartável que vislumbra, de costas para o quarto de despejo, o seu belo jardim, o jardim dos amaldiçoados pela ganância e soberba.

Quarto de Despejo, diário de uma favelada foi escrito por Carolina Maria de Jesus, publicado pela primeira vez em 1960 pela editora Francisco Alves , em capa dura apenas nas edições mais atuais. O livro distribuído em mais de 40 países e traduzido em mais de 30 idiomas, carrega em seu íntimo a necessidade de dizer para o mundo a situação das pessoas mais pobres, que são descartadas nas favelas brasileiras, assim como ela, Carolina de Jesus, mãe de três filhos João, José Carlos e Vera que viveu na favela do Canindé às margens do rio Tietê, em São Paulo.

Em seu livro, escrito em forma de diário e repleto de poesia, desencantos, gritos políticos e devaneios, Carolina relata bem mais que seu dia a dia na favela e as dificuldades enfrentadas por ela. Ela consegue enxergar além da sujeira e maldade, delineando um “lindo vestido feito do tecido do céu e das estrelas” em seus relatos, que mesmo carregado de dor também nos oferece esperança e beleza.

A escrita foi mantida em sua forma original, o que a primeira vista pode parecer incorreta, se analisarmos apenas a persistência da sociedade em ser gramaticista, mas que revela a pureza de uma descrição tão complexa e vasta, que se torna mais relevante o que está por "dentro" das palavras de Carolina do que as regras da escrita em si. Além disso, essas transgressões gramaticais foram mantidos para que se tornassem uma pequena fresta por onde começamos a penetrar no âmago da escritora e de seu contexto social e, somente após esse primeiro contato é que a autora nos abre a porta aos poucos até escancará-la em um fluxo constante de sintonia que se reveza, onde ela nos mostra a podridão de dentro do quarto para o mundo e a podridão do mundo para a favela.

A narrativa impressiona ao passo que nos enriquece, e se torna única e um dissabor irremediável, servindo para além das análises na educação, antropologia, literatura e demais áreas, ela é mais do que isso, ela é da literatura. O odor do quarto de despejo onde há tantas Carolinas, Marias, Anas e tantas outras mulheres negras da favela que lutam todos os dias por uma vida melhor, agora chega às nossas narinas, desde os jardins até a cozinha.

a sobrevivência precede a existência...

Por isso, e pensando em tantos todo outros aspectos de diferentes áreas e diferentes perspectivas e trejeitos da própria linguagem literária presentes dentro da obra, que esse livro se faz tão importante nas escolas e para a vida dos alunos, podendo ser trabalhado desde anos finais do ensino fundamental até o ensino médio, a depender da abordagem do professor e da turma.

A obra de Carolina traz em sua essência a inter relação entre conceitos que são tão próximos e tangenciais na literatura, aspectos que podem ser trabalhados nas entrelinhas da obra, como por exemplo, os de caráter social, formação de leitores, da linguagem, como o preconceito linguístico, dentre outros, que podem contribuir e enriquecer a experiência de leitura e a experiência da estética literária tanto para os alunos quanto para nós professores. Além, é claro, do amplo trabalho pedagógico que podemos realizar com nossos alunos, esse livro se torna enriquecedor a cada leitura, e o Quarto de despejo, agora com a boca escancarada, grita, canta e faz poesia com suas verdades que saem da favela para o mundo.

Daiane Joice da Silva, aluna do curso de letras licenciatura Português/Francês da UFMG. Resenha literária para a aula de Fundamentos Metodológicos do Ensino de Língua Portuguesa: Prática de Ensino de Literatura / FaE / Letras / UFMG, 2019.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

JESUS, Carolina Maria de. Quarto de Despejo.São Paulo: Ática, 1999.

COSSON, Rildo. Letramento literário: teoria e prática. São Paulo: Editora Contexto, 2009.

COSTA VAL, M. Graça. Redação e textualidade. São Paulo: Martins Fontes, 1991.

POSSENTI, Sírio. Indícios de Autoria. Perspectiva, Florianópolis, v.20, n.01, p.105-124, jan./jun. 2002.

Foto: Folha de São Paulo

Daia J Silva
Enviado por Daia J Silva em 14/07/2021
Código do texto: T7299628
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