A revolta das máquinas, volume 1

“A REVOLTA DAS MÁQUINAS” volume 1
Miguel Carqueija

Resenha da coletânea “A revolta das máquinas”, volume 1, de Clifford D. Simak. Livros do Brasil, Lisboa, Portugal, Coleção Argonauta 278, sem data. Título original: “Skirmish”, “copyright 1977 do autor. Prefácio do autor. Tradução de Eurico Fonseca.

A Coleção Argonauta é a mais tradicional que existe em língua portuguesa, no que se refere à FC; e Simak, pouco publicado no Brasil, nela aparece com frequência. Para mim Simak é um dos maiores, senão mesmo o maior de todos os escritores de ficção científica. Pode-se dizer que ele é único no seu estilo. Obsedante, focaliza geralmente o indivíduo que, sem ser nenhum super-homem, se vê diante de um problema tremendo, do qual talvez dependa a sorte da humanidade ou do universo. A grandeza paradoxal do Homem (ou de sua extensão, o Autômato) — pequeno, diante da imensidão esmagadora do Cosmos, mas grande em seu altruísmo — eis o tema basilar de Simak.
Neste primeiro volume de “A revolta das máquinas” encontramos seis contos que não revelam o melhor do autor, mas não traem o seu gênio.
“O refúgio” é o segundo conto de “Cidade”, uma obra que na verdade é uma espécie de romance dividido em contos interligados. “City” é um clássico da FC mas deve ser lido de preferência como um todo. Tirado do contexto, “O refúgio” (ou “Aglomeração”, como se vê na edição GRD de “Cidade”) parece perder alguma coisa. Mas talvez seja apenas a estranheza de reencontrar a história isolada da saga à qual pertence.
Depois do abandono das grandes cidades — fenômeno que, segundo o livro “City”, lançado no início dos anos 50, estaria ocorrendo agora — a humanidade acostumou-se a uma vida mais bucólica, afastada das multidões e com os visofones para se comunicar até com Marte. Por isso Jerome Webster já não vai a parte alguma. E raciocina: “Qual era a necessidade de ir fosse onde fosse? Tinha tudo ali”. Essa acomodação, porém, tornar-se-á trágica quando Webster, um médico, for chamado para socorrer o filósofo marciano Juwain — que está prestes a elaborar um sistema filosófico que trará incalculável benefício para todos. A agorafobia (medo de lugares abertos e multidões) que prende Webster em casa, coloca-o diante de aterradora opção: deixar seu amigo morrer em Marte ou — que coisa terrível! — sair de casa? Mas o que impressiona é o vigor que Simak coloca na situação, conseguindo transmitir as emoções do personagem, de modo que o seu dilema não se afigura uma bobagem.
“Deserção”, também de “Cidade”, é uma trama bastante original, que fala na base terrestre em Júpiter, de onde voluntários saíam metamorfoseados em rastejadores, uma forma de vida local, adaptada à enorme gravidade do planeta. Fowler, que chefia a base, preocupa-se porque os homens que partem como rastejadores (“galopadores” da tradução de Eurico Fonseca, diferindo da edição brasileira de “Cidade” — como se explica isso?) não retornam. Finalmente, com a consciência atormentada, resolve ir ele próprio, com seu cachorro. E eles descobrem porque ninguém retornava: porque era muito mais agradável ser um galopador. O desfecho, já se vê, não é muito lisongeiro à vaidade humana.
“A revolta das máquinas”, que eu lera há muitos anos sob o título “A escaramuça”, fala de um repórter que, a partir do estranho comportamento da sua máquina de escrever, faz uma descoberta apavorante: a Terra foi invadida por máquinas inteligentes e estas, abrindo a inteligência das máquinas terrestres, iniciaram a rebelião contra os seres humanos. A ironia é que Crane, o repórter, não sabe o que fazer com a sua descoberta, já que as pessoas racionalizam para não acreditarem no anormal. “Racionalizavam para salvar a sua sanidade mental — para tornar as idéias mentalmente inaceitáveis em qualquer coisa admissível. Portanto, ninguém acreditaria nele. Eis o que a história transmite: a esmagadora solidão de um homem que sabe o que ninguém mais sabe, que precisa divulgar o que sabe e se vê na impossibilidade de fazê-lo.
“Boa noite, Mr. James” é quase uma história de terror e mais uma vez se passa em torno de um ser solitário, no caso a cópia de um homem. O próprio Simak, no seu prefácio, declara tratar-se de “uma história viciosa — tão viciosa que foi a única das minhas histórias adaptada a tv. É tão diferente de tudo quanto escrevi que por vezes pergunto a mim próprio como cheguei a fazê-la”. É pena, sem dúvida, que Simak não tenha sido descoberto por tv e cinema; quanto à sua observação, note-se que o conto possui as características simakianas. Por exemplo, o personagem (no caso o duplo de Henderson James) que ignora a sua própria origem, que descobre em si mesmo um mistério. A diferença apontada por Simak reside certamente no caráter ou nas motivações do personagem, que ao contrário do típico personagem central de sua prosa, não está norteado por ideais elevados ou nobres, fato que irá influir decididamente no tipo de desfecho.
“Os educadores” retrata as dúvidas do reitor do liceu de Millville, intrigado com a questão levantada por seu treinador esportivo, Jeny Higgins, que assim se expressa: “Mas não é normal. Não há nenhum rapaz que dê mais importância ao estudo que ao futebol”. Como se vê, um conto sutilmente irônico. Sem ser “hard” ou “soft”, como se costuma às vezes definir a FC, Simak segue por uma via alternativa, que alguns chamam de realismo fantástico e outros de fantasia científica. Dean é outro homem comum, em busca de alguma espécie de aconchego, e que descobre outro fenômeno estranho. Um fenômeno relacionado com esquisitos educadores alienígenas e sua influência sobre os jovens.
Finalmente, em “Todas as armadilhas da Terra”, vemos o robô Richard Daniel descobrindo o estranho poder trazido pela viagem espacial em pleno vácuo, isto é, do lado de fora da espaçonave. Mais uma vez o estigma de um poder insólito singulariza um personagem, um dos personagens perseguidos e atormentados de Simak. E o poder, no caso, é de visualizar pessoas e coisas como diagramas, delas obtendo, como do próprio universo, uma compreensão mais profunda.
O conto, embora original, não chega a ser tão brilhante quanto outros do autor — até porque o robô não possui uma definição de caráter tão concreta quanto a do Harrington de “Último gentleman” ou de tantos outros heróis simakianos.
Estamos, evidentemente, diante de uma obra menor de C.S. Mas, em se tratando de um gênio, até o menor é maior.

CLIFFORD D. SIMAK – escritor norte-americano (1904-1984), autor de “Cidade”, “Boneca do destino”, “As flores que pensam”, “Caminhavam como homens”, “Engenheiros cósmicos”, “Onde mora o mal”, “Deixemo-los no Céu” etc. Mestre da ficção científica mesclada com fantasia, dos mais prolíficos, dono de estilo nobre, comparável a Poe.

Rio de Janeiro, 9 de fevereiro a 30 de março de 1991.
Texto originalmente publicado no extinto fanzine “Megalon”, que era editado em São Paulo pelo jornalista Marcello Simão Branco e onde eu assinava em certa época a coluna “Galeria do Tempo” onde resenhava livros de ficção científica.