Viver não é para principiantes

PERES, Urânia Tourinho. Depressão e melancolia. Rio de Janeiro: Ed. Jorge Zahar Editor, 2003. 62 p. (Coleção Psicanálise Passo a Passo - 23).

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Por: Lúcio Alves de Barros

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“As lágrimas do mundo vêm em quantidades constantes” (Samuel Beckett)

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O livro de Urânia Tourinho Peres, Depressão e melancolia, traz um importante resumo do já famigerado debate que trava a psiquiatria e a psicanálise acerca da depressão e, por ressonância, dos seus sintomas (Pimenta & Ferreira, 2003). O texto, didático - daí ter um bom lugar na coleção Passo-a-Passo da Editora Zahar - apesar de direcionado aos chamados iniciantes, condensa o debate e os conceitos sobre o início, desenvolvimento e a maturação do que se convencionou denominar de depressão.

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Os leitores não vão encontrar nessa obra nenhuma solução para os problemas cognitivos e epistemológicos que cercam a definição de fenômenos empíricos que atacam a determinadas pessoas em certas conjunturas históricas, tampouco vão se deparar com linhas de auto-ajuda e conselhos para “viver bem”. Pelo contrário, a autora se preocupa com a descrição, a história, as definições e as representações efetuadas por importantes autores que se debruçaram sobre o tema da melancolia e da depressão.

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O livro pode ser dividido em duas partes. A primeira traz a história, a caracterização da personalidade melancólica, a “dor de existir” e a questão do sofrimento. A autora não esquece de lembrar a longa trajetória da depressão, já encontrada nos tempos de Hipócrates (460-377 a.C.) o qual receitava ervas e remédios orais para a dor invisível que atacava a alma (Solomon, 2002). Mas foi durante a Idade Média que a depressão foi vista com maus olhos: acreditava-se que as pessoas que a possuíam estavam tomadas pelos “desfavores” de Deus. O Renascimento modificou esse caminho, o melancólico, antes de tudo, era um romântico, “nascido sob o signo de saturno, cuja apatia significava insight e cuja fragilidade era o preço pago pela visão artística e a complexidade da alma” (Solomon, 2002:264). Em outras palavras, ser melancólico não era privilégio para qualquer um, somente para artistas, filósofos e intelectuais da época. O termo melancolia era o mais utilizado e, diante das incompreensões do que se passava no espírito, haja vista que a anatomia e a genética, apenas de longe acompanhavam o desenvolvimento da ciência, optou-se por retomar a idéia de que a “melancolia decorreria de um excesso de um elemento frio e seco no organismo (a bílis negra). A teoria dos humores ainda predomina dividindo a humanidade em quatro grupos de diferentes temperamentos: o melancólico (bílis negra), o colérico (bílis amarela), o sangüíneo (sangue) e o fleumático (água)” (Peres, 2003: 15).

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Somente no final do século XVIII e início do XIX é que a melancolia recebeu novas tintas de entendimento. Apelava-se - através dos sintomas - para os sentimentos de inibição, solidão, amargura e tristeza para descrever a “personalidade do melancólico”. A essas variações de humor agregavam-se explicações da era da ciência: o melancólico era um “desesperado”, “doente dos nervos”, “pessoa com problemas na cabeça”, “um apaixonado pela morte”, ou um “amante exacerbado da vida”. Na realidade, inexiste consenso em relação às causas da melancolia nesse período. Em meados do século XIX, principalmente com os avanços da ciência médica, apareceram os primeiros estudos sobre os “males que atacavam o espírito”; dentre os quais foram de capital importância as obras de Emil Kraepelim, Geord Beard, Martin Charcot, Sigmund Freud e Karl Abraham. Aos dois últimos, devemos a definição de neurastenia bem como toda descrição dos sintomas das psicoses, manias e depressões.

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É forçoso mencionar que é nesse mesmo período que o termo melancolia foi substituído pela acepção da depressão. De acordo com Solomon (2002:264), “perturbações há muito chamadas de melancolia são agora definidas pelo termo estranhamente corriqueiro de depressão, que foi inicialmente usado em inglês para descrever o desânimo em 1660, e entrou para o uso comum em meados do século XIX”. O “novo”, nesse caso, recebeu a roupagem do velho. A depressão, como doença da moda (Solomon, 2002), ou dita por muitos como o “mal do século” tornou-se em tempos de mercado, o produto mais bem vendido pela indústria farmacêutica. Mas o que parece igualar o novo e o velho? Peres ressalta com pertinência a obra de Freud que, em O mal-estar na civilização, apontou para o perigoso e complexo desejo humano da eterna felicidade. A impossibilidade de ser feliz 24 horas por dia, e “amar o outro como a si mesmo” é o preço que a humanidade paga pelo avanço do processo civilizatório (Freud, 1997). Fala-se de uma sociedade apática, reprimida e recalcada, longe do paraíso cristão. Condenados à neurose e à infelicidade restam aos seres humanos a culpa e o sofrimento. Tais sentimentos marcam com ferro e fogo a alma do deprimido que, ao sofrer uma dor que não enxerga, pena em sua singularidade. O mal-estar, aparentemente, toma-lhe a consciência, constituindo barreiras ao gozo ou mesmo ao simples enfrentamento das dificuldades provenientes do mundo da vida.

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A segunda parte do livro se divide em três seções: (1ª) um retrato da depressão nos dias atuais, (2ª) a abordagem psicanalítica e (3ª) a visão da psiquiatria. No primeiro caso, a autora adverte para o caráter epidêmico da depressão que, em poucos anos, transformou-se em um dos mais sérios problemas de saúde pública enfrentados pela Organização Mundial da Saúde. Nos EUA, no período de 1980 a 1989, por exemplo, foram registradas cerca de 2,5 a 4,7 milhões de consultas e prescrições de antidepressivos (Peres, 2003: 26). É difícil mensurar a depressão, os autores se baseiam em registros de consulta, prescrições médicas e venda de antidepressivos. Acredito que muitos confundem o que realmente é a depressão ou mesmo não possuem a mínima consciência do que estão falando. Não obstante o problema das pesquisas, os números não deixam de ser preocupantes e revelam, sem dúvida, mudanças em vários aspectos da cognição coletiva.

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Na seção que se refere à abordagem da psicanálise, Peres (2003) salienta a importância da visão de três autores: Melaine Khein, Jacques Lacan e Sigmund Freud. A primeira, parte do pressuposto da existência de duas posições nas quais os indivíduos podem ser encontrados enquanto deprimidos: a posição esquizo-paranóide (presente na fase oral) e a depressiva (presente no primeiro ano de vida). Ambas são inerentes em nossa formação já na infância, e, possivelmente, em algum momento da vida, seriam ativadas. A depressão, nesta perspectiva, estaria latente na “própria constituição de todo ser humano” (Peres, 2003: 38).

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Na obra de Lacan, a autora chama atenção para a presença do sentimento de perda e do luto. Afirma que o autor não trabalha de sistematicamente as questões que envolvem a depressão e a melancolia. Entretanto, pode-se inferir de sua obra a questão da “falta”, da carência de algo muito próprio dos momentos de luto e de perda. A morte de uma pessoa querida ou a perda de algo que o ser humano muito desejava é o desencadeante perfeito para os momentos de depressão. Esses momentos acionam o “vazio” existente em cada ser humano, haja vista que algo ainda não está preenchido e, provavelmente, nem venha a estar. A impossibilidade do gozo na vida se reflete em uma alma repleta de culpa, cujo resultado é o sofrimento, um sentimento que arde sem ser visto, uma dúvida latente sem resposta, um incômodo sem fim e angustiante.

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Em relação à obra de Freud, a autora destaca a problemática da culpa e, novamente, do luto. Em suas palavras: “o luto é decorrente de uma perda real, morte ou abandono de uma pessoa querida, ou uma abstração que ocupe esse lugar, enquanto na melancolia encontramos uma perda mais ideal; não há clareza sobre o que realmente foi perdido. O melancólico pode saber quem ele perdeu, porém não sabe o que de fato perdeu. Enquanto no luto o perdido é absolutamente consciente, na melancolia há uma perda que foi retirada da consciência, ou seja, é desconhecida” (Peres, 2003: 35).

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Esse desconhecimento, obviamente, se encerra no Eu, ao qual o superego sempre trata de acertar as contas. Para o melancólico esse acerto é um sofrimento, pois ele acha que não ama tal como os outros amam. Sua autocensura torna-se um constante sofrimento, pois ao mesmo tempo em que ela se revela como uma couraça, apresenta-se como uma cela que lhe impede de amar. Infelizmente, muitos acreditam em tais circunstâncias. Penso na existência de um outro caminho: deprimidos e melancólicos amam demais a vida e não acreditam que o amor dos outros, presente na cultura oficial do capitalismo individualista e efêmero (Lipovetsky, 2004; Costa, 2004), pode ser tão complexo quanto ao seu. Essa frustração, intensificada em um mundo dividido em amor e ódio, recalca e reprime “deprimidos” e “melancólicos”, os quais desesperados pela diferença manifesta, deixam de mostrar pulsões e desejos. O processo de “ensimesmamento” se assenta em uma alma carente do outro e distante de um mundo ideal. A representação de um mundo repleto de amor e bondade castiga a alma do deprimido e a impossibilidade desse paraíso é sua eterna ilusão. Nas palavras de Peres (2003: 37), “a tensão entre o ideal do eu e as possibilidades reais do eu gera culpa, que se presentifica na melancolia de forma bastante severa. O melancólico aceita as reprimendas do seu supereu, admite a culpa e se castiga”.

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Em relação à abordagem da psiquiatria, a autora revela pouco diante das várias pesquisas que vem indicando o aumento da depressão nas sociedades ditas pós-modernas. Contudo, vale a leitura por trazer os vários mecanismos utilizados pelos seres humanos ao longo da história para afastar os males da alma. Dentre eles a autora chama atenção para a importância das poções feitas com raízes fortes, o uso do heléboro, da mandrágora, dos cataplasmas, banho de águas terminais e das drogas, como o ópio, o haxixe e a cocaína.

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São importantes as linhas que tratam da primeira substância química utilizada no tratamento da depressão, a iproniazida, substância ostensivamente utilizada pelos tuberculosos. Somente em 1957 surge a imipramina, primeiro antidepressivo considerado não estimulante e de capital importância para o tratamento das depressões provenientes das neuroses (Peres, 2003: 52). Em 1987 surge a famigerada “pílula da felicidade”, o Prozac, que a despeito de alguns problemas, abre novas perspectivas para o tratamento da depressão (Holmes, 2001). É nesse contexto que cresce a importância do estudo dos neurotransmissores, como a serotonina e a noradrenalina, substâncias químicas que passaram a ser responsáveis pela alteração do humor ou do que se convencionou denominar, nos dias atuais, de transtornos mentais (Holmes, 2001). Tais substâncias, ao serem recaptadas, por exemplo, pela paroxetina, fluoxetina e sertralina, interferem na melhora dos quadros de humor, aliviando os sintomas da depressão. O estudo aprofundado dos neurotransmissores abriu novas perspectivas para o tratamento dos “deprimidos” e dos “melancólicos” que teimam em sonhar com um modelo ideal de felicidade. A crítica de Peres (2003), nesse sentido, não deixa de ser contundente: “à psiquiatria biológica, privilegiando a descrição de sintomas, mantém pouca preocupação etiológica e quase nenhuma pela história do paciente. Sob a bandeira de uma pretensa cientificidade, assistimos ao desprezo pela subjetividade do paciente” (Peres, 2003: 54). Todavia, a autora esquece que o mundo da vida não espera e tampouco respeita a singularidade e o sofrimento dos indivíduos. A psicanálise, a despeito da importância do divã e da recuperação dos retalhos de um tecido da subjetividade que ficaram no caminho, oferece perspectivas em longo prazo. Entretanto, a lógica da sociedade é outra, ela exige velocidade, uma pretensa beleza, saúde, coragem e vigor. Em poucas palavras, a sociedade - fascista, competitiva, desumana e impaciente - tem por desejo resultados imediatos, mensuráveis e objetivos. Certamente é de fundamental importância a asserção acerca do sentido da existência humana e como os seres humanos devem proceder para o preenchimento do vazio existencial (Frankl, 1990, 2001). Também faz algum sentido a preservação do direito à tristeza, ao luto e à melancolia. Homens e mulheres não são máquinas e sabemos que o corpo e a mente envelhecem carregando as marcas do tempo e da história. Infelizmente, a maioria dos seres humanos não está preparada para viver as metamorfoses, próprias das condições objetivas da passagem da vida (Kehl, 2003). Nesta situação, se inexiste a “pílula da felicidade” e estamos distantes de uma sociedade benevolente e igualitária, longe dos preceitos de Cristo e das filosofias de Marx, é melhor que venham os sintomas e, conseqüentemente, os avanços da ciência e dos medicamentos para que, aliviados temporariamente, a vida seja, pelo menos, mais suportável.

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Referências Bibliográficas

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COSTA, Jurandir Freire. O vestígio e a aura. Corpo e consumismo na moral do espetáculo. Rio de Janeiro: Ed. Garamond, 2004.

FRANKL, Viktor Emil. Em busca de sentido. Um psicólogo no campo de concentração. Trad. Walter O. Schlupp e Carlos C. Aveline. 14ª ed.. Petrópolis, RJ: Ed. Vozes, 2001.

FRANKL, Viktor Emil. Psicoterapia para todos: uma psicoterapia coletiva para contrapor-se à neurose coletiva. Tradução: Antônio Estevão Allgayer. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 1990.

FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. Tradução José Octávio de Aguiar Abreu. Rio de Janeiro: Ed. Imago, 1997.

HOLMES, David S.. Psicologia dos transtornos mentais. Tradução: Sandra Costa. 2ª ed.. Porto Alegre, RS: Ed. Artes Médicas, 1997.

KEHL, Maria Rita. As máquinas falantes. In: NOVAES, Adauto (Org.) O homem-máquina: a ciência manipula o corpo. São Paulo: Ed. Companhia das Letras, 2003. pp. 243-260.

LIPOVETSKY, Gilles. O império do efêmero. A moda e seu destino nas sociedades modernas. Trad. Maria Lúcia Machado. 7ª ed. São Paulo: Ed. Companhia das Letras, 2003.

PIMENTA, Arlindo Carlos & FERREIRA, Roberto Assis. O sintoma na medicina e na psicanálise - notas preliminares. Revista Médica de Minas Gerais, Órgão Oficial da Associação Mineira de Educação Médica, Belo Horizonte, vol. 13, n° 03, p. 221-228, julho a setembro de 2003.

SOLOMON, Andrew. O demônio do meio-dia. Uma anatomia da depressão. Tradução Myriam Campello. Rio de Janeiro: Ed. Objetiva, 2002.

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* Bacharel e licenciado em Ciências Sociais pela UFJF, mestre em Sociologia e doutor em Ciências Humanas: Sociologia e Política pela UFMG. Professor da Faculdade de Educação (FAE/BH) na UEMG (Universidade do Estado de Minas Gerais). Agradeço aos comentários da Drª Hilbene Rodrigues Galizzi, deixando claro, obviamente, que, qualquer equívoco encontrado é de minha inteira responsabilidade.

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* Resenha publicada na Revista Brasileira de Sociologia das emoções. Paraíba, RBSE, Vol. 4, nº 11, Agosto de 2005, p. 2 16.