A autobiografia de Astréa Pedrosa
A AUTOBIOGRAFIA DE ASTRÉA PEDROSA
Miguel Carqueija
Resenha do livro “Artur Menezes, 25”, de Astréa Pedrosa. Cedira Equipe Editorial, Brasília-DF, 1989. Capa: quadro de Gaspar Luiz Rodrigues Costa feito especialmente para o livro; moldura e letras de Armando Furtado. Prefácio de Ilza Espírito Santo Porto, do Grupo Literário Alagoano. Introdução: Gustavo bandeira de Mello.
Esse livro de memórias é singelo e despretensioso, porém escorreito e de agradável leitura. A autora refere-se, no título, ao endereço onde morou em criança, no Maracanã, bairro do Rio de Janeiro, isso quando não existia o estádio. Ela veio a ser professora, casou-se, teve filhos e netos, morou no Nordeste e algum tempo no Paraguai. Não há, em seu livro, acontecimentos terríveis ou históricos, é uma narração tranquila de fatos comuns, de uma época mais simples que a nossa. Na ausência de fatos extraordinários o charme do livro é sua autenticidade e sua singeleza.
É um livro família. A própria tela da capa representa a mãe da autora. A introdução é assinada por seu irmão. E na dedicatória ela agradece o apoio do marido.
Com total despojamento, quase ingenuidade, Astréa vai contando a sua vida e de sua família. O pai, Jeronymo Leite Bandeira de Mello, que mal conheceu, morre quando ela tem três anos, durante a Revolução Constitucionalista de 1932. Nessa ocasião ele servia ao Exército em Sergipe e seu batalhão foi enviado a São Paulo, fico da insurreição.
“O Governo Federal afirmava que São Paulo queria separar-se do Brasil e não poderia ser permitido um rompimento na unidade brasileira. Sei agora que não foi bem assim, que a luta teve várias causas de natureza política, mas, de qualquer forma, cresci considerando-o um herói e sei que o foi realmente — subiu um morro para observar a tropa oponente e levou um tiro no coração. Ainda teve tempo de escrever um bilhete à mamãe: “Meu amor. Morro cumprindo o meu dever. Seja feliz. Adeus.”
Astréa dedica espaço à empregada que acompanhou sua família, a Hermínia: “É uma pessoa boníssima, analfabeta, mas não ignorante, com ideias simples e positivas sobre a vida, que muito me ajudaram durante a adolescência.” É a conhecida sabedoria natural dos incultos, como o personagem de Mazaroppi. No entanto as crianças a zoavam: “Hermínia tinha medo, pavor de minhocas, dessas minhoquinhas que andam na terra, nos canteiros e nos vasos de plantas. Às vezes nós, as crianças, corríamos atrás dela com uma minhoca na mão. (...) Mamãe me corrigiu: não havia motivo para que eu fizesse isso. Hermínia era tão boa, tão querida, tão amiga. Nunca mais o fiz, nem deixei que as outras crianças o fizessem.”
O tempo vai passando, vem o tempo da guerra, a narração prossegue em sua simplicidade cativante: “Como já contei, Gustavo foi para a guerra. Chorei muito um dia no Instituto. Fechei-me numa sala de aula e chorei à vontade, até que a professora de inglês, D. Dídia Fortes, abriu a porta, me viu e chamou-me. (...) Foi um ano duro. Em 46 a Força Expedicionária voltou ao Brasil, já dissolvida, porque o Presidente Getúlio Vargas tinha medo de sua força.” E sobre o irmão Gustavo: “Ele chegou mais tarde, feliz por ter voltado, mas creio que nunca esqueceu o horror da guerra.” Sim, a guerra é de fato um horror para quem se vê no meio dela.
E segue a narrativa delicada, sensível, desvendando costumes de um tempo recente, mas que já nos parece outro mundo, tanto a humanidade atual nos parece bem mais embrutecida. Vejam este trecho delicioso:
“Creio que a maioria das outras meninas era mais ou menos como eu. Algumas namoravam, como a Glauce, que contava que ia ao cinema com o namorado, a Dalva, que vi beijando o dela no ponto do ônibus e outras que os cadetes iam buscar na porta do Instituto. Aliás, era bonito de se ver: aos sábados, quando saíamos, aqueles rapazes bem postos à espera das normalistas. Estas atravessavam o portão com um certo orgulho, davam-se as mãos e ou caminhavam a pé, ou tomavam o bonde, cujo ponto era bem em frente, na Rua Maris e Barros. Geralmente as meninas iniciavam um namoro já pensando em casamento e, talvez em parte inconscientemente, faziam tudo para agradar os rapazes. (...) Quase todas conversavam com os namorados nas portas de suas casas, algumas nas varandas, ou passeando de mãos dadas na calçada em frente. As mais arrojadas iam ao cinema, na sessão das duas, no máximo das quatro, e depois paravam na porta de casa, conversando até as oito, nove horas. Dez, nem pensar; sair à noite, muito menos.”
E é assim, como uma suave sinfonia, que Astréa Pedrosa vai desfiando as suas doces memórias.
Este livro é, para mim, uma descoberta e tanto, de uma escritora brasileira de grande valor, da qual eu não tinha o mínimo conhecimento.
É também a recordação de um grande amigo que sumiu no mistério: Flávio Bittencourt, que eu conheci no Rio de Janeiro (foi meu colega de trabalho) e que depois se mudou para Brasília, passando a se comunicar comigo via internet. Em 2011 ele deu um pulo no Rio e nos reencontramos, ocasião em que ele me deu de presente este livro, no dia 9 de junho do citado ano. Tempos depois eu soube que ele sofrera um derrame cerebral e estava sendo cuidado pela filha. Depois mais nenhuma notícia, baldados os esforços de contato pelas direções que eu tinha (telefone, endereço residencial, correio eletrônico). E não sei se ele ainda vive neste mundo.
Rio de Janeiro, 5 de fevereiro a 17 de maio de 2021, parágrafo final acrescentado em 6 de junho de 2021.
A AUTOBIOGRAFIA DE ASTRÉA PEDROSA
Miguel Carqueija
Resenha do livro “Artur Menezes, 25”, de Astréa Pedrosa. Cedira Equipe Editorial, Brasília-DF, 1989. Capa: quadro de Gaspar Luiz Rodrigues Costa feito especialmente para o livro; moldura e letras de Armando Furtado. Prefácio de Ilza Espírito Santo Porto, do Grupo Literário Alagoano. Introdução: Gustavo bandeira de Mello.
Esse livro de memórias é singelo e despretensioso, porém escorreito e de agradável leitura. A autora refere-se, no título, ao endereço onde morou em criança, no Maracanã, bairro do Rio de Janeiro, isso quando não existia o estádio. Ela veio a ser professora, casou-se, teve filhos e netos, morou no Nordeste e algum tempo no Paraguai. Não há, em seu livro, acontecimentos terríveis ou históricos, é uma narração tranquila de fatos comuns, de uma época mais simples que a nossa. Na ausência de fatos extraordinários o charme do livro é sua autenticidade e sua singeleza.
É um livro família. A própria tela da capa representa a mãe da autora. A introdução é assinada por seu irmão. E na dedicatória ela agradece o apoio do marido.
Com total despojamento, quase ingenuidade, Astréa vai contando a sua vida e de sua família. O pai, Jeronymo Leite Bandeira de Mello, que mal conheceu, morre quando ela tem três anos, durante a Revolução Constitucionalista de 1932. Nessa ocasião ele servia ao Exército em Sergipe e seu batalhão foi enviado a São Paulo, fico da insurreição.
“O Governo Federal afirmava que São Paulo queria separar-se do Brasil e não poderia ser permitido um rompimento na unidade brasileira. Sei agora que não foi bem assim, que a luta teve várias causas de natureza política, mas, de qualquer forma, cresci considerando-o um herói e sei que o foi realmente — subiu um morro para observar a tropa oponente e levou um tiro no coração. Ainda teve tempo de escrever um bilhete à mamãe: “Meu amor. Morro cumprindo o meu dever. Seja feliz. Adeus.”
Astréa dedica espaço à empregada que acompanhou sua família, a Hermínia: “É uma pessoa boníssima, analfabeta, mas não ignorante, com ideias simples e positivas sobre a vida, que muito me ajudaram durante a adolescência.” É a conhecida sabedoria natural dos incultos, como o personagem de Mazaroppi. No entanto as crianças a zoavam: “Hermínia tinha medo, pavor de minhocas, dessas minhoquinhas que andam na terra, nos canteiros e nos vasos de plantas. Às vezes nós, as crianças, corríamos atrás dela com uma minhoca na mão. (...) Mamãe me corrigiu: não havia motivo para que eu fizesse isso. Hermínia era tão boa, tão querida, tão amiga. Nunca mais o fiz, nem deixei que as outras crianças o fizessem.”
O tempo vai passando, vem o tempo da guerra, a narração prossegue em sua simplicidade cativante: “Como já contei, Gustavo foi para a guerra. Chorei muito um dia no Instituto. Fechei-me numa sala de aula e chorei à vontade, até que a professora de inglês, D. Dídia Fortes, abriu a porta, me viu e chamou-me. (...) Foi um ano duro. Em 46 a Força Expedicionária voltou ao Brasil, já dissolvida, porque o Presidente Getúlio Vargas tinha medo de sua força.” E sobre o irmão Gustavo: “Ele chegou mais tarde, feliz por ter voltado, mas creio que nunca esqueceu o horror da guerra.” Sim, a guerra é de fato um horror para quem se vê no meio dela.
E segue a narrativa delicada, sensível, desvendando costumes de um tempo recente, mas que já nos parece outro mundo, tanto a humanidade atual nos parece bem mais embrutecida. Vejam este trecho delicioso:
“Creio que a maioria das outras meninas era mais ou menos como eu. Algumas namoravam, como a Glauce, que contava que ia ao cinema com o namorado, a Dalva, que vi beijando o dela no ponto do ônibus e outras que os cadetes iam buscar na porta do Instituto. Aliás, era bonito de se ver: aos sábados, quando saíamos, aqueles rapazes bem postos à espera das normalistas. Estas atravessavam o portão com um certo orgulho, davam-se as mãos e ou caminhavam a pé, ou tomavam o bonde, cujo ponto era bem em frente, na Rua Maris e Barros. Geralmente as meninas iniciavam um namoro já pensando em casamento e, talvez em parte inconscientemente, faziam tudo para agradar os rapazes. (...) Quase todas conversavam com os namorados nas portas de suas casas, algumas nas varandas, ou passeando de mãos dadas na calçada em frente. As mais arrojadas iam ao cinema, na sessão das duas, no máximo das quatro, e depois paravam na porta de casa, conversando até as oito, nove horas. Dez, nem pensar; sair à noite, muito menos.”
E é assim, como uma suave sinfonia, que Astréa Pedrosa vai desfiando as suas doces memórias.
Este livro é, para mim, uma descoberta e tanto, de uma escritora brasileira de grande valor, da qual eu não tinha o mínimo conhecimento.
É também a recordação de um grande amigo que sumiu no mistério: Flávio Bittencourt, que eu conheci no Rio de Janeiro (foi meu colega de trabalho) e que depois se mudou para Brasília, passando a se comunicar comigo via internet. Em 2011 ele deu um pulo no Rio e nos reencontramos, ocasião em que ele me deu de presente este livro, no dia 9 de junho do citado ano. Tempos depois eu soube que ele sofrera um derrame cerebral e estava sendo cuidado pela filha. Depois mais nenhuma notícia, baldados os esforços de contato pelas direções que eu tinha (telefone, endereço residencial, correio eletrônico). E não sei se ele ainda vive neste mundo.
Rio de Janeiro, 5 de fevereiro a 17 de maio de 2021, parágrafo final acrescentado em 6 de junho de 2021.