"Um conto de natal" de Charles Dickens: por trás da mensagem bonita, em um livro bem escrito, uma hipocrisia incômoda
Livro “Um conto de natal” do escritor inglês Charles Dickens. É sua obra mais difundida e, provavelmente, a mais conhecida obra com a temática natalina.
Na história, conhecemos Ebenezer Scrooge, um idoso avarento e rabugento, que vive sozinho e é incapaz de nutrir empatia por qualquer pessoa, incluindo seu sobrinho. Certo dia, ele é visitado por três fantasmas (ou espíritos): os fantasmas do natal passado, presente e futuro, respectivamente. Por meio da interação com as três criaturas sobrenaturais, ele será convidado a repensar sua conduta.
Dickens escreveu essa obra em meados de 1843, ou seja, no início da Segunda Revolução Industrial. Ao contrário da primeira etapa da revolução, focada no uso do ferro e do carvão, esse período tinha como característica o início do uso extensivo do petróleo, o que se traduziu numa rápida ascensão de polos industriais em grandes cidades, ocasionando forte êxodo rural. Essa migração de pessoas, do ambiente rural para o urbano, vista em vários países, significou uma deterioração da qualidade de vida dessas pessoas, intensificando a desigualdade social. Por um lado, vimos o apogeu de uma nova classe burguesa, portadora dos meios produtivos industriais. Por outro lado, vimos a nova classe trabalhadora, quase sem direitos, onde as pessoas (inclusive crianças) encaravam longas e duras jornadas de trabalho.
Todo esse contexto histórico deve ser levado em conta quando se fala de Dickens. Muitas de suas obras trazem uma empatia em relação a essa classe trabalhadora sofrida e havia uma crítica à sociedade que permitia tal desigualdade. Entretanto, Dickens nunca foi um revolucionário ou alguém que realmente fizesse algo prático para mudar/influenciar essa situação. Afinal, é a citada nova classe burguesa, fruto dessa industrialização, que irá consumir os livros do autor. E Dickens era muito popular.
Soa, portanto, meio hipócrita, essa preocupação do autor com a sociedade que gera a decadência social, retratada em sua obra, ao mesmo tempo em que se enriquece com a venda de livros para a classe opressora.
É inegável que a mensagem de “Um conto de natal” tenha lá seu valor. É importante valorizar as pessoas, ser alguém digno de ser lembrado, ser humano, empático. Contudo, quando se conhece todo esse contexto histórico relacionado ao Dickens, é interessante notar como que os personagens pobres e sofridos da história dependem de um acontecimento atípico (no presente caso, um elemento sobrenatural), de uma casualidade do destino, de um ato bondoso de quem oprime, para terem a chance de terem uma mudança positiva no rumo de suas vidas. Mudança, essa, que não é oriunda na melhoria da sociedade. O status quo é o mesmo, com ou sem a presença do espírito natalino.
Ignorando-se tudo isso que citei, analisando o livro pelo livro em si, podemos dizer que… a escrita de Dickens é fluída e simples. A mensagem final está dentro de um aspecto conservador, católico, e há uma certa poesia presente. Sobre o personagem principal, Scrooge, há um certo aparato caricato na sua composição, sem que a origem de sua avareza e desumanidade seja completamente trabalhada, ao meu ver, tendo sua metamorfose mais relação com um apelo a sentimentos reclusos e uma frivolidade ao apelo material e não uma reflexão mais sólida sobre a ascensão, desenvolvimento e extensão de sua desumanidade.
Como curiosidade, vale citar que “Um conto de natal”, ao longo das décadas, foi adaptado várias vezes para outros formatos, tais como peças de teatro, filmes, desenhos animados e histórias em quadrinhos. É das HQs, inclusive, que vem a influência mais famosa: o personagem Tio Patinhas, da Disney, criado por Carl Barks, é diretamente inspirado no protagonista do livro. Seu nome original, por sinal, é Scrooge McDuck.
Enfim, trata-se de um livro cativante e uma boa leitura, apesar da hipocrisia que permeia sua concepção. Vale uma conferida, seja pelas reflexões que proporciona, seja para passar o tempo enquanto o jantar de natal não fica pronto.
NOTA: 3/5 (bom).
FICHA: DICKENS, Charles: tradução de Silvio Antunha. Um conto de natal. Jandira: Ciranda Cultural (Principis), 2019, 96 páginas. Título original: A christmas carol.