O fabulista Oscar Wilde

O FABULISTA OSCAR WILDE
Miguel Carqueija

Resenha da coletânea “Histórias de fadas”. Editora Nova Fronteira, Rio de Janeiro-RJ, 4ª edição, 1992. Título original: “The fairy stories”. Tradução: Barbara Heliodora.

Conhecidíssimo autor irlandês do século 19, Oscar Wilde é autor de um excepcional romance de terror intitulado “P retrato de Dorian Gray”; Os seus contos de fadas, que o colocam alinhado com fabulistas célebres tipo Irmãos Grimm, Hans Christian Andersen e o Cônego Schmidt, foram publicados pela primeira vez em 1888. São edificantes, tristes, com detalhes cruéis mas focalizando valores como a bondade, o amor e o sacrifício.
O PRÍNCIPE FELIZ – Fábula enternecedora,onde um príncipe altruísta porém reduzido à condição de estátua de si mesmo conta com a ajuda de um passarinho para apesar de sua imobilidade ajudar vários seres humanos que sofrem as agruras da pobreza extrema. O príncipe sacrifica partes de seu corpo metálico — como as jóias dos seus olhos — e o pássaro, uma andorinha, a sua migração para o Egito, para fugir do frio. Os dois no fim serão recompensados por Deus, mas antes sofrem muito para que outros não sofram.
“Na praça ali embaixo — disse o Príncipe — está uma menininha que vende fósforos. Ela os deixou cair na sarjeta, e eles ficaram todos estragados. Seu pai vai espancá-la se ela não levar algum dinheiro para casa, e ela está chorando. Ela não tem sapatos nem meias, e está com a cabecinha descoberta. Arranque meu outro olho e o dê a ela, para que seu pai não a espanque.”
O GIGANTE EGOÍSTA – Este conto é famosíssimo, eu já o conheço desde criança e certa vez foi lido por Dom Marcos Barbosa em seu saudoso programa radiofônico. É uma história intemporal sobre um gigante que não queria crianças brincando em seu jardim e as expulsou raivosamente. Sem as crianças porém as flores deixaram de medrar e o inverno tomou conta do jardim. Dessa forma, com o faz-de-conta dos contos de fadas (como a idéia dos gigantes convivendo entre nós), Wilde confecciona uma linda mensagem de amor cristão.
O AMIGO DEDICADO – O pintarroxo conta uma história “com moral” ao Ratão D’Água e este não a entende. A história em si é sobre dois seres humanos que mantém um estranho relacionamento. Um é rico e o outro é pobre, e estranhamente é o rico que explora o pobre apresentando-se porém como seu grande amigo. A cara-de-pau de Hugo, o moleiro, é tão grande que irrita os leitores, e o mesmo se pode dizer do pobre Hans, de sua passividade diante dos abusos do outro, ainda por cima crendo ter em Hugo um verdadeiro amigo. O exagero do conto porém é bem proposital e perfeitamente inteligível para as crianças. Para resumir Hugo nada sabia dar a Hans, mas levava suas flores e frutos e ainda o explorava de diversas maneiras. É o verdadeiro protótipo do espaçoso e do falso amigo.
O FOGUETE NOTÁVEL – Oscar Wilde, de forma genial, dá vida a simples objetos além de emprestar personalidade a animais e plantas. Neste notável conto os fogos pirotécnicos conversam enquanto aguardam a sua utilização na festa de casamento do Príncipe. Tudo isso serve como pano de fundo a uma sátira sobre a presunção. O presunçoso no caso é um foguete que, diante do Buscapé, da Rodinha, da estrelinha e outros fogos, expõe uma arrogância cheia de empáfia, tão exagerada que só mesmo em fábulas. Vejam esta frase: “Que felicidade para o filho do Rei casar-se exatamente no dia em que eu vou ser lançado!” O curioso é que o lançamento do foguete equivale à sua destruição, mas num conto de fadas isso é um mero detalhe.
O ROUXINOL E A ROSA – História muito triste sobre um rouxinol que se sacrifica para dar uma rosa vermelha a um estudante apaixonado que por sua vez a daria a uma jovem. No final decepcionante o estudante termina concluindo que o amor é uma coisa tola — e realmente o é, se não for guiado pela razão. Como em outros textos, Wilde vai mostrando que coisa patética e desconcertante é a vida.
O JOVEM REI – Este conto é de uma filosofia incrível, ao mostrar um príncipe em vias de ser coroado rei e que tem vários sonhos sucessivos, visões que lhe mostram a pobreza e o sacrifício do povo, que sustentam o luxo da corte (o Brasil já não é monarquia, mas... sentem a semelhança?). Um tecelão, por exemplo, diz ao jovem Rei: “Na guerra os fortes fazem escravos dos fracos, e na paz os ricos fazem dos pobres seus escravos. Temos de trabalhar para viver, e eles nos dão salários tão mesquinhos que morremos. Trabalhamos para eles o dia inteiro, e eles acumulam ouro em seus cofres, enquanto nossos filhos definham antes do tempo e os rostos dos que amamos tornam-se duros e maus.”
O pior porém é que quando o Rei, motivado pelos sonhos, resolve abandonar toda a pompa e viver de forma simples, encontra incompreensão no próprio povo, como um homem que lhe diz: “Trabalhar para um amo é amargo, porém não ter um amo por quem trabalhar é ainda mais amargo. Pensais acaso que os corvos irão alimentar-nos?”
O ANIVERSÁRIO DA INFANTA – Eu li este conto em algum lugar há muitos anos, talvez ainda criança. É tocante, extraordinário, ao retratar o estado de espírito de um pequeno anão disforme recebido como uma espécie de bobo numa corte, nos festejos do aniversário da Infanta. E as ilusões inocentes do anão, que consegue divertir a princesa e julga ser por ela amado e fantasia unir-se a ela — até que a terrível verdade lhe surge ao ver-se pela primeira vez diante de um espelho.
O FILHO-DA-ESTRELA – Narrativa triste, angustiante, que fala de culpa, arrependimento, expiação e redenção, terminando com uma dose de otimismo em relação à humanidade e suas instituições. Um conto tipicamente fabuloso, onde os animais convivem com os seres humanos.
O PESCADOR E SUA ALMA – Existe um filme brasileiro com este título e deve ser baseado no conto de Wilde. É um conto muito estranho sobre um jovem pescador que se apaixona por uma sereia e vai viver com ela no fundo do mar. Antes, porém, separa-se de sua alma, que por estranhos motivos era um estorvo para a união. “A Gente do Mar não tem alma”, alega a sereia.
É exdrúxula a idéia de uma alma que é mandada embora pelo seu “dono” como se não fossem uma coisa só, e sai pelo mundo vivendo aventuras até convencer o pescador, com estratagemas, a segui-la e abandonar a sereia. É o conto de que menos gostei e de mais difícil exegese.

Rio de Janeiro, 4 a 19 de julho de 2019.