O CAÇADOR DE PIPAS, de Khaled Hosseini

AVISO: Esta resenha contém revelações sobre o enredo (spoilers).

O que diferencia um livro bom de um ruim? Alguns diriam que é a estória em si. Mas, e se existissem dois livros sobre a mesma estória, o que tornaria um deles melhor que o outro? Provavelmente a capacidade de um dos autores em melhor criar a arte literária, expressando de um modo único e perfeito aquilo que deseja transmitir. Sabe-se que duas pessoas podem presenciar o mesmo fato e o narrarem em versões totalmente distintas. Apesar de ambas falarem a verdade, contarem a mesma história, o resultado final será algo diferente, pessoal, único. E a versão mais popular será aquela que melhor saciar um anseio que os ouvintes ou leitores procuram satisfazer. Essa é versão da história que cairá no gosto das massas, até sendo vulgar, imprecisa ou parcial. Ela agrada e pronto, mesmo que não seja boa literatura, apenas entretenimento.

Um dos defeitos que tenho é que não consigo conter a curiosidade em ler um livro que muitos compram e indicam já há algum tempo, apesar de conhecer a diferença entre os best-sellers e boa literatura: a maioria das vezes eles não andam juntos. Aprendi essa diferença com vários grandes escritores, que entre outras coisas, disseram:

"Em minha época não tinha best-sellers e não podíamos prostituir-nos. Não tinha quem comprasse nossa prostituição."

(Jorge Luis Borges)

"A filosofia mercantilista que desde muito tempo vem regendo a cultura converteu às grandes casas editoriais em máquinas de vendas de best-sellers previsíveis, pré-fabricados sobre um rigoroso estudo de mercado. Para isso contam com estratégias que vão desde os mais sutis recursos publicitários ao aconselhamento de críticos especializados, encarregados de convencer aos leitores de que o livro que eles desejam é aquele que está no setor de “Novidades” e que em rigor deveria se chamar “Fugacidades”, porque não costuma ser outro o destino dessa classe de literatura."

"Os best-sellers estão para a literatura como a prostituição está para o amor."

(Ernesto Sabato)

"O povo é tão simplório que prefere ler o novo a ler o que é bom."

"O reconhecimento pela posteridade costuma ser pago com a perda de aplauso por parte dos contemporâneos, e vice-versa."

(Arthur Schopenhauer)

Que O caçador de pipas é um best-seller não há dúvidas, pois já ultrapassou a barreira dos cinco milhões de exemplares vendidos em todo o mundo, sendo um milhão apenas no Brasil. Também já virou filme – outro aspecto comum entre os best-sellers – que estreará no próximo ano. Mas mesmo correndo o risco de ter uma jihad literateira contra mim, não creio que o livro de Hosseini deva ser classificado como boa literatura. No máximo um dramalhão popular, bem ao estilo do Titanic (1997), considerado por muitos como o filme do século. O livro é um entretenimento para as massas, mas o pior é que passa uma mensagem política subliminar que nem todos percebem claramente.

Nos muitos comentários entusiastas dos leitores sobre o livro, há expressões de que é um relato fidedigno dos costumes, lugares e pessoas do Afeganistão, que o livro é uma lição de vida, que ensina ao leitor a ver os relacionamentos com outros olhos e que é o melhor livro que já leram em suas vidas. Seguem abaixo algumas considerações sobre cada uma dessas afirmações.

Em primeiro lugar, trata-se de um livro norte-americano escrito para norte-americanos, após os atentados terroristas de 11 de setembro de 2001, quando o Afeganistão passou a fazer parte da mídia – e da vida – dos estadunidenses. Seria óbvio que aparecessem escritores justificando a invasão a um país estrangeiro, mostrando a diferenças de governos, culturas e tecnologias entre os países invasor e invadido. O caçador de pipas faz esse papel. Como mostra a vida de um garoto que passa a infância no Afeganistão e que depois refugia-se nos Estados Unidos as comparações seriam até certo ponto inevitáveis. Mas o autor vai além da mera comparação e afirma categoricamente que sua nova pátria é melhor que a anterior: através dos olhos de Amir, o protagonista do livro, ou de Baba (o pai de Amir), como neste trecho:

"- Só existem três povos nesse mundo que são homens de verdade, Amir – dizia ele. E os contava nos dedos: - os americanos, esses heróis fanfarrões; os britânicos e os israelenses. Todo o resto – e, ao dizer isso, costumava fazer um gesto com a mão, acompanhado de um “pfff” - não passa de velhotas mexeriqueiras."

Ou através de personagens que apesar de não morarem nos EUA admitem a sua superioridade, como Rahim Khan, amigo de Amir residente em Cabul:

"- Pelo que vejo, os Estados Unidos infundiram em você o otimismo que fez deles um grande país. Isso é ótimo. Nós, os afegãos, somos um povo melancólico, não somos? Quase sempre ficamos chafurdando em ghamkhori e autopiedade. Damo-nos por vencidos diante das perdas, do sofrimento; aceitamos tudo isso como um fato da vida ou chegamos até a considerá-lo algo necessário."

Há também uma série de referências a marcas e empresas que conquistaram o mundo, como Coca-Cola, Ford, Electrolux, Singer, Reader’s Digest, além dos filmes e atores hollywoodianos, como que mostrando a supremacia norte-americana também em outros aspectos. Os filmes indianos e paquistaneses são mencionados, mas preteridos pelos garotos Amir e Hassan quando esses julgam como melhores os faroestes norte-americanos.

O engodo do livro é tentar se vender como uma mensagem afegã ao mundo. Usa incansavelmente palavras persas inseridas no texto, explicando-as logo em seguida. Para um afegão que fosse ler o livro nesse estilo soaria excessivamente repetitivo. Para um não-afegão poderia transmitir a idéia que o escritor é um nativo do Afeganistão e portanto uma espécie de porta-voz do seu povo.

"- Que estranho! – exclamei.

- O quê?

- Estou me sentindo um turista na minha própria terra – respondi, olhando para um pastor que ia andando pela beira da estrada, conduzindo umas seis cabras magérrimas.

Farid deu uma risadinha. Jogou fora o cigarro.

- Ainda considera esse lugar a sua terra? – perguntou ele.

- Acho que uma parte de mim vai sempre pensar assim – respondi, mais na defensiva do que pretendia.

- Depois de vinte anos vivendo na América...

- Por que é que está dizendo essas coisas? – indaguei.

- Porque você queria saber – respondeu ele rispidamente. Apontou para um velho maltrapilho que se arrastava por uma estradinha de terra, carregando um imenso saco de aniagem repleto de forragem preso às costas. – Esse é o verdadeiro Afeganistão, agha sahib. O Afeganistão que eu conheço. Você? Você sempre foi um turista por aqui. Só que não sabia disso."

A opinião de Amir está longe de ser unanimidade pois ele pertence ao grupo étnico Pashtun – tribo dominante com 42% da população – e mostra uma visão pashtun do Afeganistão. Além disso, o protagonista – assim como o autor – fugiram do Afeganistão quando este foi invadido em 1980 pelos soviéticos. Não ficaram lá para enfrentar os problemas. A sua idéia sobre o Afeganistão, a vida e dificuldades daqueles que lá permaneceram, sendo muitas vezes massacrados, é a de um observador externo e distante. Não revela de maneira alguma a realidade, mas somente um ponto de vista pessoal. Quem se mantém informado através de revistas e jornais bem conceituados que pesquisam sobre o assunto consegue ver com olhos críticos em que pontos o livro é faltoso. Amir admite tacitamente que não conhece o seu próprio país de origem quando vê a fotografia de seu amigo de infância com o filho – Hassam e Sohrab – que diferentes dele continuavam no Afeganistão:

"Olhando para essa foto, era possível concluir que aquele homem achava que o mundo tinha sido generoso para com ele."

"Hassam e Sohrab estão parados, um ao lado do outro, apertando os olhos por causa do sol, e sorrindo como se o mundo fosse um lugar bom e justo."

Amir não consegue entender alguém sendo feliz independente do lugar e das condições em que viva. Todos os países tem os seus problemas e dificuldades, mas passar a idéia errônea de que apenas um é o melhor, a única fonte de felicidade para todos é pura presunção. Pelo caráter sectário desta obra, provavelmente Khaled Hosseini nunca ganhará o prêmio Nobel de Literatura, se bem que hoje é possível que prêmios, antes respeitáveis, sejam comprados e manipulados.

O Afeganistão não deixou de existir e mesmo debaixo de duas tiranias diferentes – russa e Talibã – o seu povo conseguiu sobreviver. Interessante notar que o livro não fala que o governo dos Estados Unidos apoiou o Talibã na tomada do poder, nem das invasões e bombardeios americanos que ocorreram anos depois para retirá-los, em que vários afegãos inocentes morreram. Não mostra a opinião desfavorável que a maioria dos povos árabes têm dos EUA e do sistema capitalista. Este é um outro aspecto dos livros norte-americanos: relatam somente os “benefícios” levados pelos Estados Unidos ao mundo. Não me surpreenderia se amanhã surgisse um romance escrito por um iraquiano mostrando o quanto os EUA são melhores que o Iraque.

Em segundo lugar, o livro faz sucesso por demonstrar a fórmula que sempre funcionou em romances: a exploração dos conflitos. Desde os existentes entre pai e filho, crianças, classes sociais, etnias, países, culturas, até os entre o bom e o mau tanto no íntimo de um personagem (coragem versus covardia, por exemplo) quanto entre dois protagonistas que assumem papéis antagônicos na trama. Não existe estória sem conflitos. A fórmula milenar de apresentar os problemas de um herói que possui falhas de caráter, depois a luta deste em solucioná-los (os problemas e as falhas de caráter) e finalmente o retorno à normalidade pré-existente é seguida à risca em O caçador de pipas. Por isso os leitores se identificam com o personagem, pois foi utilizado um apelo psicologicamente universal, explorado por quase todos os romances escritos. Muitos que julgam aprender uma lição de vida do romance como se ele fosse uma espécie de auto-ajuda não percebem que os conflitos e as lições na verdade estão em seu íntimo, o livro somente os trouxe à tona.

O livro começa bem, tem alguns escorregões apelativos durante o decorrer da trama, mas termina satisfatoriamente o enredo, apesar de cair na qualidade escrita. O autor passa a usar expressões como "fanfarras da epifania" e ensaios não tão felizes como os abaixo que fazem o final parecer ter sido escrito por alguém diferente do início do livro:

"Perspectivas são um luxo quando se tem um enxame de demônios zumbindo constantemente na cabeça."

"Quieto significa em paz. Tranqüilidade. Estar quieto é baixar o botão do VOLUME da vida. O silêncio é pressionar o botão pra desligar. Desligar tudo."

A parte em que Amir viaja até Peshawar para encontrar-se com Rahim Khan e este revela a tragédia ocorrida com Hassan e a situação de Sohab em Cabul já conduz automaticamente o raciocínio do leitor ao final previsível da situação entre Amir e Sohab (ainda mais que Amir não conseguia ter filhos e se considerava em dívidas com Hassan), mas o protagonista (e o escritor) insiste tolamente em não compreender durante as páginas seguintes a conclusão óbvia.

Aqueles que dizem terem lido o melhor livro de suas vidas revelam o quão pouco lêem ou a falta de qualidade em suas escolhas. Apelar para o sentimentalismo, fazer chorar ou sorrir não é sinônimo de qualidade literária. O caçador de pipas é um bom entretenimento de final de semana, com certeza recomendado antes de muitas diversões atuais menos edificantes, mas comparado aos clássicos da literatura mundial ele perde feio. Mesmo assim, se for para estimular a leitura em um país onde ela não tem primazia já cumpre um papel importante, desde que analisado criticamente.

Retirado de www.jefferson.blog.br