"Pauliceia desvairada" de Mário de Andrade: mais experimento literário do que uma experiência literária
Uma obra quase centenária, ”Pauliceia desvairada”, livro de poesias de Mário de Andrade, marco pioneiro do modernismo no Brasil.
É um livro influente, importante… mas a leitura não me capturou. As vanguardas europeias que influenciaram a geração de artistas da década de 1920, trazendo uma interessante liberdade estilística, tinham em seu fundamento uma ruptura completa com os estilos tradicionais. No caso da poesia, isso significava o uso do verso livre, anárquico, em oposição aos versos determinados por suas sílabas fonéticas.
Essa liberdade permitiu, nas décadas seguintes, o surgimento de vários clássicos da poesia. Contudo, sendo bem sincero, esse grito de liberdade, essa revolução dos primeiros modernistas brasileiros, não me soa de todo sincera. Não me convence.
Quando Mário tenta ridicularizar a burguesia, o conservadorismo e o intelectualismo atrelado aos estilos clássicos, nessa busca por valores nacionais e libertários, a crítica até soa pertinente, mas quando me lembro que Mário pertencia a essa mesma classe social burguesa, viajando à Europa e consumindo a alta cultura e literatura, não me parece convincente. É como um rico que se revolta contra a opressão capitalista, mas não abre mão de seus privilégios. Eu sinto a poesia de “Pauliceia desvairada” ainda muito refém das vanguardas europeias.
Não quero ser injusto. Afinal, esse dadaísmo, esse futurismo, esse cubismo, nos quais nossos intelectuais mergulharam, esse primeiro salto, influenciaram a busca, a formação de uma literatura brasileira, com traços próprios. Talvez, um Ariano Suassuna, ou um Jorge Amado, ou um Carlos Drummond de Andrade, não existiriam sem esse primeiro passo. Enfim…
A verdade é que “Pauliceia desvairada”, para mim, soa mais como um experimento literário, uma tentativa de nacionalizar as vanguardas… e não como uma boa experiência literária em si. Mário de Andrade diz, em certo momento, que alguns não entenderam, que outros apenas sentiram, sem entender… e que isso tornava seu livro bom. Não para mim. A cidade de São Paulo, a protagonista dos versos do livro, é muito mais fascinante do que as imagens trazidas, principalmente nos poemas intitulados “Paisagens”.
O experimentalismo, em vários momentos, demonstra uma criatividade estética, mas isso desfavorece a musicalidade poética e, de certa forma, torna o resultado final desagradável, cansativo, demasiado intimista. Entendo que nem sempre de rima se faz a poesia, mas fluidez literária favorece, ao meu ver, o prazer da leitura.
É compreensível a sensação de revolução que o livro trouxe para nossa literatura, em momentos como na ausência de alguma pontuação, regra de composição e/ou no uso estranho de alguma palavra como substantivo, por exemplo. Entretanto, superado esse impacto, o que sobra é o desconforto de uma leitura arrastada. Talvez, seja o fato de que, nos quase cem anos desde sua publicação, uma gama de obras foi influenciada por “Pauliceia desvairada” e, justamente por isso, aquilo que deveria soar como original acabe, indevidamente e compreensivelmente, digerido como redundante para um leitor de poesia contemporâneo.
“Pauliceia desvairada” é um livro com momentos de versos inspirados e capaz de, em momentos específicos, criar imagens poéticas interessantes. Há uma interessante crítica ao elitismo e conservadorismo intelectual vigente no início daqueles anos de 1920, ainda que eu não veja tanta isenção e autenticidade. Há, por fim, uma busca quase ininterrupta pelo experimentalismo literário, trazendo novidades que marcariam todas as obras poéticas posteriores de nossa literatura (algo a ser elogiado), mas isso acaba prejudicando a experiência da leitura em si, seja pelo intimismo imposto pelo tempo e/ou pelo autor, seja pelo próprio experimentalismo de vanguarda.
NOTA: 2,5/5 (entre regular e bom).
FICHA: ANDRADE, Mário de. Pauliceia desvairada. São Paulo: Ciranda Cultural, 2016, 1ª edição, (Clássicos da Literatura), 80 páginas.