"Íon / Hípias menor" de Platão: a inspiração poética e a mentira, segundo o filósofo grego
Dois diálogos do filósofo grego Platão: “Íon” e “Hípias menor”. Tanto nestes diálogos quanto em outros, a figura central é o filósofo Sócrates, que conduz a conversa com algum personagem que dá título ao texto. Todos eles colocam o Homem no centro do debate numa busca pelo conhecimento tido como verdadeiro, em contraponto às explicações oriundas do espectro divino/religioso. Há no texto socrático, como dito na introdução da presente edição, além de uma busca pela definição de termos como coragem, beleza e justiça, uma crítica ferrenha aos sofistas, professores itinerantes que, por meio de remunerações generosas, ensinavam todo tipo de assunto por meio da retórica. Sócrates argumentava que a consciência da própria ignorância era a base da verdadeira sabedoria, em distinção com os sábios sofistas expunham apenas opiniões oportunas, sem refletir na verdade.
Em “Íon”, diálogo escrito entre os anos de 398 e 391 a.C., conhecemos o rapsodo de mesmo nome, que vivia recitando poemas homéricos para a multidão, muitas vezes de forma remunerada, mas que não se limitava à declamação: Íon também se dedicava em explicar os versos de Homero e, subentende-se que tais orientações ocorriam em reuniões privadas e remuneradas, apresentando um caráter moralizante, tal como era de praxe do universo sofista. É nessa prática, de explicar o sentido da poesia, que Sócrates se detém. Íon não demonstra interesse em conhecer outros poetas. Ora, mas não é necessário conhecer a arte como um todo para poder se pode falar dela? Ele não precisaria conhecer tanto aquilo que é bom quanto aquilo que é medíocre para, dessa forma, avaliar a qualidade dos versos? Homero é um pilar, mas não seria importante conhecer igualmente Hesíodo? A conclusão, encontrada por Sócrates, é que Íon não fala por conhecimento da arte, mas por “inspiração divina”, deixando-o entorpecido, em transe. Não caberia ao rapsodo explicar a arte praticada pelo médico, pelo pescador, pelo cocheiro, etc., pois um especialista assim o faria melhor. Para tal, Sócrates cita trechos da “Odisseia” ou da “Íliada” para confirmar isso, deixando claro que Íon não teria autoridade para tal. Para Sócrates, pertence a Íon algo mais belo, divino e, ainda que Sócrates chame a atenção para uma certa irracionalidade no ato de rapsodo de explicar a arte, não deixa de ser curioso que o domínio de Íon sobre as emoções dos ouvintes não seja colocado em nível mais elevado. Afinal, ao meu ver, a capacidade de comover e de cativar a plateia quanto à arte apresentada é igualmente relevante. Um professor de literatura não precisa ser capaz de escrever uma peça de teatro de nível shakespeariano para despertar o fascínio de seus alunos na prática da literatura, concordam?
Por sua vez, em “Hípias menor”, Sócrates se encontra junto à multidão, acompanhando uma conferência feita pelo sofista Hípias, durante as Olimpíadas. Após a exposição de Hípias, Sócrates é abordado por Êudico, que, incomodado com a aparente indiferença do filósofo, lhe instiga a dialogar com Hípias sobre qualquer assunto. Sócrates então indaga para Hípias sobre o que ele acha de Aquiles e Odisseu, quem seria melhor e em que? Hípias argumento que seria melhor por ser mais simples e verdadeiro, enquanto Odisseu seria mais multiforme, conforme definido pelo próprio Homero. Mas o que seria multiforme? Aquiles não seria igualmente multiforme? Hípias explica que Odisseu, no verso homérico, é apresentado como mentiroso, traiçoeiro – daí o sentido do termo. Sócrates questiona se o verdadeiro e o mentiroso poderiam ser a mesma pessoa. Hípias nega que isso seja possível, que são coisas opostas, tal como Aquiles e Odisseu. Sócrates, então, vai no sentido oposto ao senso comum, explicando que para mentir, em qualquer área, é necessário ter sabedoria e, por consequência, implica em saber a verdade. Temos então um paradoxo socrático onde aquele que mente é o mesmo que diz a verdade. Não existia, portanto, diferença entre os dois personagens homéricos, nessa questão. Se tanto Aquiles quanto Odisseu dizem mentiras, contudo, mas o primeiro diz de forma involuntária e o segundo voluntariamente (posição defendida por Hípias), é Odisseu o herói superior, porque é o sábio na questão, não sendo o ignorante que mente sem perceber o equívoco. O diálogo caminhará por diversos meandros, mas acabará resultando numa aporia, ou seja, numa falta de conclusão, com ambos os debatedores reconhecendo sua ignorância quanto a um desfecho satisfatório.
A presente edição da L&PM, em formato pocket, traz uma excelente introdução e importantes notas explicativas de André Malta, que também assina a tradução dos dois diálogos.
A leitura de qualquer texto socrático é uma oportunidade única de treinar o senso crítico e a busca de um conhecimento enriquecedor e, ainda que não se concorde com algum ponto de Sócrates (ou de Platão), é impossível ficar indiferente aos seus pertinentes argumentos. Uma ótima leitura.
NOTA: 4/5 (ótimo).
FICHA: PLATÃO: introdução, notas e tradução do grego de André Malta. Sobre a inspiração poética (Íon) / Sobre a mentira (Hípias menor). Porto Alegre: L&PM, 2008, (L&PM Pocket # 620), 96 páginas. Título original: Ἱων / Ἱππίας ἐλάττων.