Sangue e fúria da caçadora das planícies
O carioca Fábio Kabral já conquistou o seu espaço no coração dos leitores com seus romances afrofuturistas. Mas em A cientista guerreira do facão furioso, vemos uma enorme expansão em Ketu Três. Nesse romance narrado em primeira pessoa, seguimos a trajetória de uma personagem que nos foi apresentada anteriormente em O caçador cibernético da Rua 13, a jovem Jamila Olabamiji.
Embora no primeiro romance que dá início a saga, a adolescente tenha feito apenas uma aponta, em seu livro solo, a narrativa parece se conectar com tramas mais profundas do universo kabraliano. O livro apresenta grandes diferenças com o seu anterior, seja pelo olhar inexperiente de Jamila, seja pela sua recepção aos acontecimentos que envolvem a sua pessoa.
Na obra, Kabral nos mostra uma narração pouco linear, mas, precisa e aprofundada. Jamila vive com seu pai Agenor Olabamiji em um dos setores mais pobres de Ketu Três. Seu sonho é ser inventora e mudar o mundo com suas máquinas movidas a fantasma. Ela estuda num dos poucos colégios de elite da região. Os dramas de Jamila se tornam maiores após sofrer perseguição e violência de um colega de classe: Pedro Olawowo.
Nem só de violência escolar vive o cotidiano de Jamila. Ela namora a Fernanda Adaramola, uma jovem que tem ligações com as grandes corporações que controlam o mundo de Ketu Três. O relacionamento entre as duas tem seus altos e baixos, seja pela diferença de personalidades ou da diferença de classe entre as duas. Apesar de ambas serem muito jovens, Fernanda demonstra uma maturidade que falta à Jamila.
Assim como no livro protagonizado por João Arolê, vemos o encontro do caçador com Jamila Olabamiji, e apesar de repetirmos algumas situações e diálogos, vemos os acontecimentos pelos olhos dela. A narração em primeira pessoa cravou isso. Apesar da autoconfiança da moça, ela ainda é curiosa como uma criança e orgulhosa demais de suas capacidades, o que ao longo do tomo gerou muitas piadas legais.
A adolescente, após o acidente no Parque das Águas Verdes, acaba se relacionando com o grupo rebelde Ixoté. O que me leva a conclusão de que existe uma trama ainda maior por trás de todos esses personagens, e que me parece reservar um futuro trágico para todos eles. Foi um romance cheio de revelações e que me deixou aflito para adentrar cada vez mais nesse mundo afrofuturista.
Apesar de todos os ganhos que esse livro trouxe, algumas coisas acabaram me incomodando. Uma delas é a repetição. Nem condeno a parte da Jamila e do Arolê, estou falando da repetição de diálogos, descrições, às vezes, no mesmo capítulo. Achei desnecessário. Outra coisa pouco conveniente é a enorme quantidade de exposição, soaram com excesso de didática e produziu conversas artificiais.
A escrita apela para o excesso de reticências, o que na minha opinião só trava a leitura, ao mesmo tempo em que parece que o autor não gosta muito de vírgulas. Pulei parágrafos inteiros devido a repetição, as benditas reticências e a falta de vírgulas. A leitura se apresenta descontínua e muito arrastada devido a esses artifícios de escrita do autor. Achei O caçador cibernético da Rua 13 mais maduro nessas questões.
O livro nos apresenta os meandros do corporativismo de Ketu Três. Em um dos diálogos, Jamila diz: “Deus me livre viver num mundo governado por homens”, ou algo que o valha. Algo até comum nos discursos do movimento feminista em geral. O que a personagem talvez não tenha se dado conta, é que mesmo na sociedade onde ela vive, governados por empresárias-sacerdotisas, a desigualdade social, o preconceito, o terrorismo de Estado e a necropolítica se fazem presente. O próprio caso da Jamila já poderia nos ajudar a levantar questões sobre a bioética em Ketu Três.
Para que aja opressão não é necessário patriarcado ou machismo, visto que, Ketu Três é uma sociedade matriarcal e matrilinear — as crianças e os esposos recebem o nome das mães, por exemplo —, e a violência e opressão se dá em nível igual ou maior do que em qualquer uma de nossas sociedades reais e patriarcais. A ideia de sociedade hierarquizada pela idade, embora seja um dos elementos constituintes de Ketu Três, não se configura como tal. Por fim, o que quero dizer é que para que aja opressão em uma sociedade, basta termos estruturas hierárquicas.
Jamila, Fernanda e Pedro emulam conflitos ancestrais entre Ogum, Oxum e Xangô, respectivamente. A obra quebra paradigmas ao colocar um romance lésbico como condutor romântico. O amor é crível e até meigo em alguns sentidos. Ao longo da trama, senti que os sentimentos de uma delas não eram tão verdadeiros quanto pareciam ser. O que pode gerar muitas reviravoltas no futuro.
A questão da violência escolar é abordada, mas foge do sentido maniqueísta com vários questionamentos de Jamila sobre a tradição social e sua situação de mulher vulnerável, sofrendo violência e perseguição de um colega de classe. A omissão dos professores e o prazer que Pedro tem em violentar sua colega causa espanto e também agonia. Parece que todos já naturalizaram a violência entre crianças e adolescentes, julgando tais atos menores. Esquece a sociedade que um dia as crianças irão crescer e se tornarem adultas.
Senti falta das ilustrações internas. Elas foram substituídas por uma imagem padrão de uma placa de circuitos. Algo pouco criativo, na minha opinião. Jamila merecia mais. Existe metatextos dentro do livro, configurando uma poética da ancestralidade. O autor também colocou citações da Mãe Presidente Ibualama no fim de alguns capítulos. Mas como ela não participa da história, a coisa ficou com um tom de lição de moral. As metáforas e analogias que o autor usou durante o livro, me pareceram bem elaboradas, porém, em algumas partes, foram malsucedidas ao longo da narrativa.
O livro é rico em questionamentos existenciais e representatividade, sem que isso provoque fissuras narrativas. Todos ali têm seu papel, personalidade e objetivos. Jamila tem contrastes, e é nisto que consiste seu carisma. Seu desenvolvimento me lembrou os de mangás shonen. Tínhamos “uma ninguém”, e no fim do livro terminamos com uma heroína com objetivos ainda mais nobres que os anteriores.
O livro tem orelhas e contracapa de Kênia Freitas, Doutora em Comunicação e pesquisadora do afrofuturismo. Ilustração de capa do Rodrigo Cândido, com a Jamila Empunhando o Facão de Ogum. O livro tem mais de 280 págs., e foi publicado pela Editora Malê, sendo o segundo livro da saga afrofuturista criado pelo carioca Fábio Kabral. O livro conta com um glossário de termos iorubanos no fim do livro.
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