Poemandria

Poimandres na cultura mitológica, nos alfarrábios secretos, era uma espécie de deidade responsável por retirar ou expandir a mente e a luz que habitava a alma dos homens. Caracterizado pelos alquimistas como um dragão sagrado, este Deus abria portas para um mundo invisível, mundo onde apenas pessoas de grande sensibilidade conseguiam ingressar ou ver.

Entre os poucos eleitos, os tocados pela seletividade divina, está o escritor, filosófo, andarilho e entusiasta da música setentista Raymundo Raine, ou Rai como todos os que já frequentaram a Galeria do Rock costumaram o chamar.

Quem encontra aquela figura magra, cabelos compridos, camiseta de alguma banda obscura que você não conhece, sorriso amistoso, voz calma e cadenciada, nem desconfia estar diante de um grande poeta, na verdade um mestre da palavra que pinta versos e parágrafos usando como tinta cenas de uma realidade psicodélica que só ele, o escolhido, vê.

Há livros que dilaceram o intelecto e os sentidos, há livros que nos fazem flutuar, "Poemandria" (Editora Soma, 1980, 94 pgs) é um deles.

Depois de décadas vasculhando sebos de varias cidades pensei que nada mais me surpreenderia e que já conhecia tudo que o mercado editorial havia lançado nos anos 80 até que topei com esta pequena antologia poética e fui fulminado por palavras, rimas e outros truques desta autêntica epopeia urbana.

"Poemandria" ficou descansando quarenta anos nas prateleiras empoeiradas dos sebos, na verdade nas prateleiras menos nobres como as últimas lá embaixo perto dos pés dos clientes ou mal arquivado fazendo companhia à sidartas e castañedas em improvavéis seções esotéricas onde tudo que é inclassificável é juntado. Hoje, exatamente agora, este livro habita dentro de uma garrafinha boiando ondas deste vasto oceano virtual chamado internet. Pode, ou ao menos deveria, ser resgatado.

Verlaine já vaticinara que um lance de dados jamais abolirá o acaso.

Por acaso encontrei este livro de um autor singular que finge não ter pintado a Monalisa. Não são textos de escritor biográfico, mas páginas sobre o invisível, folhas que versam sobre sonhos diurnos repletos de notas musicais e paisagens inventadas.

Esgoto aqui os superlativos ainda incrédulo como algo assim possa quase ter sido varrido pelo avançar das décadas.

Chegou a hora de relançá-lo e divulgá-lo, afinal os tempos são outros e as regras do rude mercado do livro nem existem mais.

Vamos quebrar a banca e usar os dados onde todos os lados são o seis

CHEFE DA QUADRILHA

Ele levantou-se como um eremita;

Profundo e matutino.

Ouviu um grito rasgando o tempo,

tomou um banho,

Esquentou o café de ontem

- o sol beijava a penumbra -

Ele abriu as janelas e viu que o mundo

havia acabado.

Saiu na rua, colheu uma flor de plástico

e chorou.

Voltou à sua casa inóspita, vestiu-se de

cosmonauta e começou a tocar piano,

bebeu, gritou, cantou o hino nacional e

cortou os pulsos.

A sirene saiu agoniada entre os muros da manhã

ele era o Chefe da Quadrilha e só queria incendiar o manicômio...