Os olhares como janelas do texto em O olho esquerdo, de André Alvez Alexandra Vieira de Almeida – Escritora e Doutora em Literatura Comparada (UERJ)
Os olhares como janelas do texto em O olho esquerdo, de André Alvez
Alexandra Vieira de Almeida – Escritora e Doutora em Literatura Comparada (UERJ)
O primeiro livro de contos de André Alvez (Editora Patuá) já se inscreve por seu processo inventivo especialíssimo, conjugando fatos corriqueiros com o poder imaginativo do poético. Adepto do realismo mágico, sua escrita conjuga elementos do universo fantástico e do sonho, com a realidade mais brutal, que choca os olhos do leitor, que embaçados pelas lentes distorcidas do real, procuram criar um itinerário de diversos sentidos que afloram nas 15 narrativas da obra de Alvez. Como o próprio título indica, a questão do olhar é primordial em suas histórias. Leonardo da Vinci comparava o olho à janela do corpo humano, que consegue abarcar o mundo. Assim, pensamos, como algo tão pequeno pode circunscrever uma esfera tão grandiosa como o exterior? O título do livro, segundo o autor, foi escolhido pelo conto de que mais gostou, um dos meus favoritos e que vou aqui analisar, juntamente com outros cinco contos de que mais gostei, para termos um olhar mais específico sobre os aspectos principais de seu livro.
Os contos são maravilhosos, misturando o tom mais rascante com momentos de rara poeticidade. Os olhares, as diferentes perspectivas criam espelhos múltiplos de perplexidade e espanto no leitor. De acordo com a simbologia egípcia, o olho esquerdo representava a lua. Aí, podemos inferir um sentido enigmático e misterioso à imagem. O olho se apresenta como cruzamento de vozes e pontos de vista, projetando-se no infinito da biblioteca babélica e multifacetada. Há várias interpretações que podem ser esmiuçadas no seu sugestivo título, tais como desvio, daquilo que não está cristalizado pelo padrão, ao olho panóptico sistematizado. Os olhares são vertidos e invertidos pela ousadia literária, que não deixa nada a desejar aos grandes escritores.
Os contos que mais me impactaram, pela sua potência ficcional foram: Em frente ao portão, Tatuagem, O sorriso da orquídea, O homem que só tinha nariz, O olho esquerdo e Entremeio com o poeta no trem. Neles, o escritor alcança sua mais alta expressividade. Os outros também são de uma riqueza original e inventiva, perfazendo voos de engenho e profundidade. Seus textos narrativos se adensam em momentos que abarcam a memória e a presentificação de instantes de intensa força de poetizar. Dessa forma, enredo e poesia se movimentam em círculos de êxtase e arrebatamento, nos fazendo pensar sobre as luzes e sombras da existência humana.
O conto de abertura da obra, “Em frente ao portão”, apresenta a comunicação da avó do narrador através do universo íntimo e da prece. Essa intimidade do sagrado tinha sido estudada por Gilberto Freyre no Brasil quando ele analisa a devoção familiar aos santos na religião popular de nosso país. A avó, que só acreditava em Deus e no marido que se foi é revelada pelo neto da seguinte forma: “...tratava diretamente com o Divino, em conversa franca, repleta de queixumes”. E o almoço era a hora propensa a essa relação inventada pelo poder da crença. Para ela, “Deus estava almoçando também”. Aqui, encontramos a humanização da divindade, colocando-o numa relação concreta e cotidiana, com atos humanos corriqueiros, que fazem de algo que seria sublime e transcendente, em um gesto de pura carnalidade e humanidade, como a imagem do Cristo entre nós, pois a volta de Deus seria o retorno de Jesus, assim como o retorno do divino, simultaneamente se confunde com o regresso do avô do narrador.
Há todo um ritual, um procedimento de gestualidade, de comportamento, de linguagem no corpo dessa mulher misteriosa, que produz seu olhar próprio sobre o sagrado e sobre o mundo. E o narrador questiona a volta de um Deus que foi sacrificado. A imagem da cruz é algo aterrorizante para a mente consciente do narrador. Se temos cenas cotidianas, elas são carregadas de religiosidade e espiritualidade, que são refletidas criticamente pelo neto. Observem o intenso lirismo da relação entre o exterior e o sagrado na avó, perspectivado pelo olhar atento dele: “Quando o sol descia no horizonte e o céu ficava alaranjado, minha avó caminhava até a frente da casa...” E, assim, numa relação de continuidade descontínua, paradoxalmente, a beleza poética inicial se choca contra os latidos dos cachorros, infernais, unindo a visão paradisíaca e idílica a um desconforto dantesco que incomoda fortemente. Utilizando a seguir os contrastes entre “olhos abertos” e “esperanças cerradas”, aquilo que olha não abstrai, mas vive a fé cega no impossível, sendo que a realidade é mais dura do que se imagina. O olhar da avó se perde e não se encontra, se fia no fio da espada, que corta e leva à tristeza e à solidão.
A mulher esperava a volta do marido juntamente com Deus, como se seu olhar, sua percepção, unisse o terreno e o celeste, num mesmo átimo de esperança, naufragada pelo mar tempestuoso da vida. Toda essa imagem de sublimidade da espera é soterrada pelo seu vício, pois ela fumava cigarros, algo que faz seus olhos perderem o viço, assim como suas partes corporais. Outra questão recorrente no conto é a dimensão do tempo, pois ela ia a “passos lentos e melancólicos”. O tempo é espera e, ao mesmo, tempo memória, que teima em não esquecer os fatos mais cruciais que o pensamento pode comportar. Além do tempo, temos a figuração da repetição, pois num ritual simbólico, a avó se posta em frente do portão com o mesmo latido dos cães infernais. Nesse sentido, o sagrado se atualiza pelo fato de querer repetir o movimento original, se propagando no tempo e no espaço. Não cabe aqui falarmos dos motivos da partida do avô do narrador, que terá de percorrer as linhas inusitadas da escrita genial de André, num enredo de grande teor realista, com pitadas de ironia e lirismo, dando vigor a sua história envolvente. Num misto de silêncio e barulho, choro e soluço, a avó expõe seus olhares contraditórios, assim como o narrador, entre a aversão e o afeto entre as personagens. E, através de seu realismo mágico, com um onirismo muito potente, o real invade o sonho e até Deus estava presente nele. Outros contrastes ímpares e singulares comparecem na sua narrativa mágica como o dia nascendo com seus cheiros de café recém coado com o cigarro que a avó fumava. As imagens conflitantes revelam os olhares enviesados e ambíguos sobre o real, pois a beleza física se opõe ao vício: “A senhora de modos elegantes ao caminhar, e traços bonitos no rosto rosado, cheirava nicotina”.
Com intensa perspectivação das personagens, comparece, de forma surpreendente, o tio Lourenço, em que o olhar do narrador e dos caracteres em conflitos e tensões se observam pelas lentes do narrador. A avó se revela por sua cegueira, pela mente nublada e eclipsada, fugindo dos fatos e criando uma ponte para sua imaginação e fabulação. Tio Lourenço é a metáfora mesmo daquilo que abala os alicerces da família, sendo comparado, inicialmente, pelo narrador como um demônio vindo após uma tempestade. É a ruptura possível, a quebra da linearidade e repetição incessante e simbólica da avó. Mas, por outro lado, encontramos o afeto nessa figura diferenciada, sendo que o narrador vai percebendo a semelhança entre os dois, com a ideia aterradora do demônio familiar que vira a página. E o tio é que vai levar ao narrador o universo dos livros, a literatura é a ponte para a liberdade. Por noites seguidas, ele lê para o sobrinho, que dorme a partir de sua voz mansa. E o livro que ele lê é Dom Quixote, com seu cavaleiro andante da Mancha. O sobrinho dorme nas frases cruciais todos os dias, mas algo se internaliza na sua viagem pelo mundo fantástico da literatura. E o que era medo se dissipa. O pesadelo se consome pela chama ardente do literário. A relação que se dá entre o tio Lourenço e narrador é de forte aprendizado, sendo o tio um antirreligioso, por excelência. As palavras olho, olhar e, todo seu semantismo nas diferentes classes gramaticais, comparecem, de forma recorrente em suas narrativas. Há trocas de olhares, pontos de vista, linguagens variadas, que demonstram o pluriestilismo de André Alvez. Nesse conto, em particular, há diferentes olhares sobre a religião, apontando para a oscilação entre crença e descrença. Isso é um leitmotiv para os sentimentos contraditórios do narrador com relação à avó. Há um embate, um duelo nos diálogos entre o neto e a avó. Os olhares ora produzem ações, ora percepções, ora sensações ou, até mesmo, linguagens de dizer e escrever, sendo presente, em toda sua singularidade, uma semântica dos olhos, como: olhos, olhar, olhava, entre outros. E a memória e o tempo são os elementos que mais refletem esses múltiplos olhares com relação ao passado, sendo a presença a captação de um olhar rememorado, que só existe, enquanto língua escrita: “O tempo passou; o cheiro e as farpas ainda existem em mim.”
No conto “Tatuagem”, temos a delicadeza da narração inicial, em que uma borboleta cruza o caminho de Clara e um rapaz sem nome. A temática do olhar novamente aqui se faz presente, pois a moça não sabe se ele olhou para ela ou só para a borboleta. Aqui, logo no começo do conto, temos uma cisão entre o olhar em terceira pessoa do narrador, que sabe e a indecisão de Clara que fica em dúvida sobre o lance dos fatos. A palavra “olhos” se repete na grande tentativa de adestrar o silêncio pelo viés do pensamento, pois que o olhar produz conhecimento. Mas, cada um foi para seu lado, naufragando os sonhos dos leitores pelo encontro e desvendamento do olhar enigmático do moço. A potência das labaredas invade o corpo total de Clara a partir do olhar, que intermedeia o interno e o externo. As imagens contrastantes comparecem de novo, entre a palidez da moça e o abrasamento do desejo. O corpo em equação assimétrica, vertigem do sonho em meio à solidão e desespero de um relacionamento frustrado.
Esse fato provoca uma metamorfose nos seus atos e Adriano vê a liberdade alcançada por Clara nessa claridade epifânica inicial, que origina uma desordem na suposta normalidade de sua vida cotidiana: “Numa ousada tentativa, passou a dormir completamente nua para desassossego de Adriano...” E nessa fuga, revela-se, depois, uma das habilidades da moça, a escrita que teima em acontecer e leva um tempo de gestação para se desenvolver e se alterar no decorrer da narrativa. Todo lugar fechado para ela, seja o banheiro ou o carro, seria o lugar ideal para ela por no papel suas palavras, juntando peças. O narrador chama esse lugar ideal de Hipocrene, que segundo a mitologia grega era a fonte de inspiração para os poetas, um lugar sagrado para as Musas. Não haveria imagem melhor para caracterizar, metaforicamente, os lugares em que Clara se interioriza, ficando sozinha para o ato criativo. Dessa forma, temos o olhar do narrador que cria todo um imaginário em torno das suas personagens cativantes. E Clara escreve o início de sua história em meio ao enredo maior, com frases que conduzem a referencialidade, ou seja, à relação entre a realidade e o ficcional. As primeiras frases que ela escreve, que ao longo de suas experiências, vão se modificando, são assim: “Um par de beija-flor beijou a tatuagem da flor da barriga da moça desacordada”. Nesse conto, temos uma metanarrativa, em que se analisa todo o processo de criação de uma história. Uma história menor dentro da história maior, o enredo do narrador e a inventividade da personagem, que adquire vida na escrita do narrador. Há todo um procedimento de lapidação das frases de Clara, mostrando o narrador do enredo que são necessários cortes, alterações, novas palavras, até chegar a um projeto final de elaboração mental na urdidura do tecido linguístico. Assim, há uma presentificação da linguagem. Na literatura, o escritor tem de aprender, para seu próprio amadurecimento, jogar fora o que não serve, sendo a escrita uma arte combinatória, de inclusão e exclusão, um processo metamorfótico no corpo da escrita, que é mostrada, de forma plena, como a transformação no corpo da personagem, em que a criatura se desvencilha do criador, ou seja, a concepção barthesiana da morte do autor, em que as personagens adquirem vida e autonomia. A “tatuagem” é a metáfora dessa liberdade da personagem que quer adquirir independência em face do aprisionamento de sua própria escrita, atingindo novos voos em direção aos abismos do insondável e do imaginário mítico.
Nesse aspecto, encontramos dois narradores, dois olhares que delimitam seu campo de atuação. O narrador que conta todo enredo de “Tatuagem”, e a personagem Clara, com a simultaneidade da escrita. Enquanto se dá o avanço do enredo, ocorre o processo de escritura de Clara, que vai burilando as arestas até chegar a uma perfeição, esta que se traduz no corpo, na pele dela e do mundo que a circunda. E, mais uma vez, os opostos se repelem, ela detestava o trabalho na empresa. E ela vai criando, apesar disso tudo, enquanto a história se prolonga. A sua funcionária tatua uma borboleta no braço e, por estranha coincidência e sincronicidade, Clara rememora o diálogo da mãe com as borboletas. Se a filha acha as borboletas lindas, numa visão de admiração e espanto, a mãe desdiz a aurora da beleza, já que elas morrem logo e não duram dois dias: “-a mãe tinha a fraqueza como solução para tudo”. Mas a filha Clara responde com seu poder imaginativo de uma criança que quer ultrapassar os limites do banal: “-Mas elas podem voar, são livres”. No entanto, a mãe rebate num pessimismo atroz, procurando tolher a beleza poética e criatividade de uma filha que quer alcançar o além: “- Jamais encontrarão o horizonte que leva à constelação”. A relação presente-passado aqui é como se ela estivesse lá, a presença do passado se configura pelo olhar de Clara, que se desprende do narrador, adquirindo sua verdadeira persona.
O olhar de Clara densifica o dentro pelo ver a natureza, ela modifica o que está ao redor, dando poesia ao externo, transformando-o por sua representação mimética. Pois que sua vida se manifesta pela rotina. É necessária a escrita, algo novo, para escapar da solidão. Há frases lapidares no conto “Tatuagem”, como: “Sonhos são ânsias, ser é menos doloroso do que imaginar, pensou enquanto se trocava”. E, assim, Clara, procura o tatuador Santiago para fazer uma tatuagem. Antes, no bar, há um jogo de olhares entre dois casais, Adriano e Clara, sua amiga sufocante Cintia e o namorado, conduzindo o leitor a descobertas. Há todo um olhar corporal que leva ao pensar, ao indagar e deduzir perante os fatos encobertos. E é a tatuagem o alicerce para os desvendamentos narrativos. Após isso, Clara faz uma nova alteração da frase, revelando o impacto da realidade no processo de sua escrita. Qual desenho que Clara irá escolher para a tatuagem, deixo para o desvendamento dos leitores diante da figura inusitada. E, novamente, depois da tatuagem em seu corpo, modifica o texto de sua narrativa, ressignificando tudo na relação entre linguagem e vivência. Portanto, esse conto mescla os componentes da literariedade com a figuração do mito grego, num modus operandi existencial, com toques de surrealismo e uma grande epifania no desfecho da narrativa.
No conto “O sorriso da orquídea”, deparamo-nos com o olhar logo no início da narração, com a personagem Eleonor, que observa: “as flores do jardim estavam diferentes; o verde caído, o brilho fosco nas margaridas, a rosa vermelha transformada em cinza com as pétalas abertas num branco sem vida”. Há um esmaecimento do externo a partir dos elementos da natureza, perfazendo um jogo entre memória e esquecimento, verdade e ilusão: “Carlos dizia enxergar o sorriso das flores”. Mais uma vez aqui, temos a palavra ligada ao ver, ao olhar, que é “enxergar”. André utiliza uma variedade de palavras, que podem ser diferentes em sua forma e sonoridade, para expressar o ato de olhar. Que é ao mesmo tempo uma ação que está ligada à mente através de seu poder de reinterpretação do real. Ressignificar o mundo pela palavra parece ser a mensagem seminal nesse conto de extrema beleza, intertextualidade com o campo da arte. Se diz no conto: “é uma orquídea, desse tronco nascerá uma das mais belas flores do mundo”. Mas Eleonor passa pelo luto, num fato estranho ocorrido, que quebra com a linearidade lógica da razão mais embotada. O lirismo da percepção sobre a morte faz a mulher encher o quintal da casa com as flores dos mais diversos tipos, inclusive com o tronco que guardava aquela orquídea misteriosa. Algo sinistro ocorre, levando o leitor aos reinos do alumbramento literário, sendo a epifania uma lógica singular recorrente nos seus contos, como nesse, lembrando-nos dos textos claricianos, em que algo estava além de nossa imaginação rotineira.
Algo novo e inesperado quebra a lógica banal da vida, a casca da semelhança repetitiva do real. Nasce um vislumbrar de coisas jamais pensadas e inéditas na vida de Eleanor: “brotou uma flor estranha, de três pétalas marrons e no centro a figura de um macaco”. E ela, “olhando atentamente, a orquídea parecia sorrir”. Aquilo que nos é estranho, causa espanto e, ao mesmo tempo admiração. Não seria essa a relação com o sagrado? Algo que não podemos compreender? O teólogo alemão Rudolf Otto falava do numinoso, como algo que causa o tremor e o fascínio, o grandioso, o totalmente outro, quando nos revela o divino (Mysterium tremendum et fascinans). E, num processo inventivo, o narrador revela a personagem como uma pessoa que começa a falar com a orquídea como se fosse Carlos.
Há toda uma simbologia da orquídea ao longo do conto, que progride em sentidos despertos pela imaginação de Eleanor. No portal “Dicionário de símbolos - significado dos símbolos e simbologia”, há a seguinte caracterização da orquídea, dando todo sentido ao conto de André Alvez: “A orquídea é símbolo de beleza, perfeição, de fecundação, entre outros. Curiosamente, o seu nome tem origem na palavra grega orchids, que significa “testículo”. Nesse sentido, na China antiga, a orquídea é um símbolo de fecundação e era utilizada nas festas da Primavera com o intuito de afastar o que era prejudicial referindo-se à esterilidade. A flor tem também um significado esotérico que vai ao encontro à perfeição e à pureza espirituais”. E Eleanor é capaz de olhar com atenção, enquanto a grande massa, num movimento mecânico e de forma inconsciente, não observa com cuidado e detalhe, sendo automatizada pelo sistema externo e pela repetição dos atos e movimentos.
Várias personagens nos seus contos são exímios observadores, na oscilação entre contemplação e análise, entre admiração, espanto e interpretação a partir dos olhares que se desviam, bifurcam, numa encruzilhada jamais conhecida. E surgem as suposições, o que os diversos olhares provocam? Algo se modifica radicalmente, refletindo-se no exterior, em que a personagem observa atentamente essa transformação que aqui não vou relatar, deixando a surpresa para o leitor. Nesse conto, há uma intertextualidade no campo das artes, com referências ao universo da literatura, da pintura e da música, como George Sand, Van Gogh e Chopin, numa mesma imagem de relações recíprocas que serve de mote ao conto de Alvez. E o que acontece a sua volta? O olhar dela? Os outros não percebem? Não olham? Estão cegos pela máquina cotidiana e trivial? Até Kafka comparece com sua metamorfose. Há toda uma descrição alucinatória, uma experiência diferenciada, o realismo mágico, percebendo aqui elementos da prosa de Lygia Fagundes Telles. Assim, é o olhar de Eleanor que transforma o real ou isso se dá factualmente? Nesse plano, há o embate entre fato e ficção. Ela consegue retornar à realidade? No final do conto, cabe ao leitor descobrir os mistérios inextrincáveis do poético que reside em nós e no mundo, da natureza, das coisas e das outras pessoas.
Outro conto que me impactou bastante se intitula “O homem que só tinha nariz”. Diferentemente da falta machadiana, no conto “O segredo do Bonzo”, em que se cria um nariz metafísico pela ausência de um, André Alvez nos apresenta um personagem com um enorme nariz que eclipsa e diminui as outras partes do rosto, revelando-se, assim, o máximo e o mínimo na fisicalidade de um ser. Encontramos na sua imagem, a escassez e o excesso, o pouco e o muito, o menor e o maior, contrastes que condizem com o próprio artefato lingual. E Carvalho, nome desta personagem singular, tinha “vergonha do próprio nariz”, sofrendo desde criança o preconceito e a aversão de outras crianças, sendo chamado por alguns de Cyrano. Aqui, uma referência ao personagem de Edmond Rostand, peça de teatro que teve várias adaptações para o cinema. Mas mesmo assim, ele tem um cargo de chefia com uma única subalterna, a bela secretaria cobiçada por ele. Nesse conto, todo um ambiente de trabalho é apresentado, com seus mecanismos e símbolos de autoridade e respeito, como Márcia, a secretária. Ela se exibia e transpirava sensualidade para todos.
Apesar de ser taciturno e solitário, vemos a força das emoções na personagem Carvalho, como um vendaval de paixão desesperada. Márcia se mostra através de interpretações dúbias com relação a sua reverência ao chefe, imaginando várias suposições pelo fato de não se importar muito com seu nariz. Assim, no conto, temos os vários olhares que se cruzam na relação com o centro de todas as atenções, uma parte do corpo, que tem um sentido erógeno, de sensação. O sensório se faz presente em todo seu fulgor. Carvalho pensa até em cirurgia plástica, mas é caracterizado como perdulário pelo olhar crítico, irônico e ácido do narrador. Se teve poucos envolvimentos amorosos, ele procurava nas putas uma fonte de prazer exótico. A relação dele com o corpo da mulher é pelo odor, pelo cheiro do corpo. Podemos nos reportar ao imaginário do livro O perfume, de Patrick Suskind, no qual o olfato aguçado tem papel essencial na trajetória do personagem.
Nesse conto, percebemos toda a rotina, o dia a dia de Carvalho, sua vida cotidiana, que é transformada pelo nariz grande, uma hiperbolização da parte do corpo, que funciona como uma forma de olhar o mundo por outro sentido do corpo. Há aqui uma substituição, uma transferência, com a relação, como ele se olha, pelo nariz, e como os outros o enxergam, pelo mesmo elemento, catalisador de todos os significados múltiplos do texto. O nariz seria o epicentro dos olhares que vem de fora e de dentro e Carvalho utiliza artimanhas para esconder o nariz num jogo de fingimento. E também tem uma imaginação borrada, desviada do centro de discernimento, ao ver o lado negativo das coisas, pensando que todas as conversas girassem em torno de seu nariz. Carvalho morria de medo de convidar Márcia para jantar. O receio é mais pelos outros, criando hipóteses sobre as reações alheias. Algo que ainda não aconteceu é presentificado por sua mente mirabolante, cheia de malabarismos com relação aos fatos.
Temos a face da impotência de Carvalho diante do mundo. Há a textualidade, uma escritura do corpo e o nariz é a chave, o assunto motor do conto. A língua serve como abertura para se falar dos mistérios do corpo, o encontro entre o interno e o externo da personagem, o olhar de dentro e o olhar de fora. E ele, em meio à natureza, onde gostava de passear, no “parque dos Poderes”, despeja todo o seu ódio por sua situação terrível num ato de crueldade, que os leitores lerão no conto. Uma espécie de deslindamento da própria agonia perante sua lida sofrida. A dor que o perpassa faz com que ele imagine e queira praticar atos impensáveis, na sua tragicidade, dando um sentido denso e tenso ao texto. Há contradições percebidas pelo olhar do narrador, observando bem de perto seus personagens.
Algo tétrico surge no pensamento dele para romper seu sofrimento atroz. No conto, encontramos reflexões e digressões em meio às ações. No desfecho do conto, há um jogo que cabe ao leitor descortinar, um jogo da sorte, que pode levar à glória ou à ruína. E entre os símbolos padronizados do direito e do esquerdo, André Alvez, brinca com nosso imaginário, percebido pelo senso comum, pois nos bolsos de Carvalho, ele inverte as polaridades. O que fica no bolso direito é ruim e no esquerdo é bom. O lado esquerdo é visto pela tradição como desvio e aqui, nesse conto, é colocado como algo benéfico. No final do conto, em contato com a natureza, há uma experiência milagrosa e poética, dando margem à esperança e à transformação. Uma apoteose epifânica ocorre, sendo recorrente no seu realismo mágico.
O conto homônimo ao título do livro nos faz lembrar do texto de Guimarães Rosa, “A terceira margem do rio”. Aqui, um homem viaja por um rio numa canoa, que vazia no começo da história, lança um convite ao narrador, e, nesse espaço vazio, a memória é acionada, sendo a embarcação o símbolo de trânsito, passagem, marca que deverá ser desvendada para descobrirmos o motivo da viagem. O nada aparece como metáfora do copo virgem que deve ser preenchido com a água da rememoração. O coelho comparece aqui como imagem do trágico que acometeu a vida de muitas pessoas no enredo, pois ele prendia o nascer de um novo dia. E, aqui, o olho esquerdo se firma como metáfora do maléfico, da potência destrutiva da natureza propriamente dita e da natureza dos seres. O olho esquerdo do coelho apontava para ele, causando uma terrível sensação, pois a “cruel criatura mantinha a última imagem do esquife envolta numa luz intensa...”
Ele relembra que a mãe dele morreu muito cedo, com o olho esquerdo repleto de sangue. Morreu de uma queda. Nesse sentido, se escreve sobre as origens das cenas fatídicas, numa sucessão cada vez mais avassaladora, a nos arrastar para o caos e a desordem do mundo. Do pai pouco se lembra e não tem certeza de seu destino. Novamente, aqui comparece o mito grego, sendo a canoa o canto da sereia que levará o personagem rumo a uma viagem ao desconhecido, com um final surpreendente e terrível. Mas no meio da história temos pistas de um desvendamento derradeiro, porque o narrador compara a canoa a um caixão, levando-nos a várias interpretações sobre um desfecho impactante. Em meio à tragicidade das cenas, mórbidas e açoitantes, tem-se o espaço da poeticidade com a visão de uma natureza em sua plena beleza e viço, contrastando com o poder demoníaco que ela transpira em seus abismos insondáveis. Apesar dessas frondosas imagens, há a descrição, também de uma natureza seca, com a imagem de uma “árvore seca”, por exemplo, mesmo que o céu fosse lilás. Nesse conto, temos a junção entre o sobrenatural e o humano, reiterando a influência do realismo mágico no seu processo de escrita. Como a manifestação da mãe morta do outro lado da estrada, fazendo um aceno, enquanto ele navega nas águas profundas do ignoto. Mas era “um fantasma de mulher bonita”. A beleza da mãe vai ser o encadeamento para seu deslindar por várias mulheres, como representações que se comparam a imagem dela, sempre presente na vida do filho. E a última imagem do esquife está lá, no assombro materno.
As imagens e comparações são fantasmáticas e aterrorizantes, como a tentativa de o filho tentar encaixar o olho esquerdo corretamente para, assim, “endireitar” o olho esquerdo da própria mãe. A viagem do filho comparece como símbolo de uma ordenação no caos em que viveu a partir da ressignificação do esquerdo pela ordem, pelo lado correto da existência. O rio, no seu fluxo contínuo, reto e linear, se apresenta a partir de sua simbologia de regeneração, de limpeza de um estigma tremendo. O papel da memória, mais uma vez, é importantíssimo na sua narrativa, fazendo da rememoração uma forma de consertar um passado que produziu manchas numa roupagem branca. O impuro e o impuro convivem num mesmo abraço fluvial. Ao longo do enredo, temos as aventuras do narrador, que revela sua face cruenta em sua nudez. Uma forma de redenção é possível? Também há um retrato social em meio à caracterização mórbida da história, com as diferenças de classes, ele pobre e o menino rico que galopava em seu alazão e que provocou ira, inveja e cobiça na mente do narrador. Ao longo do conto, há eventos trágicos ligados ao olho esquerdo, aqui visto como algo funesto. A natureza aparece como propagadora de reflexo em outros elementos naturais, num processo de encadeamentos que dão sentidos às coisas.
A questão do mal, assunto intricado para os filósofos e teólogos, é aqui trabalhada eficientemente pela escrita existencial de André Alvez que elabora seu conto com teor simbólico e ricamente literário. Há muitas surpresas durante o enredo que se expande de forma vertiginosa, tendo até o elemento fortemente erótico na vida do narrador. Em meio á morte, há o erotismo que pulsa, revelando a sua outra face, a vida. A natureza reflete as memórias do narrador e ele, numa sequência narra sobre as três mulheres que teve, citando seus nomes. O conto gira em torno de um único centro com suas vazantes e afluentes, o olho esquerdo e o que ele provoca na rede de relações entre os seres, cujo foco é o narrador. A forte sensualidade e o desejo são trabalhados ricamente e de forma potente. O sexo em meio à morte revela o desejo e a morbidez num mesmo respiro de signos, propensos à imaginação do narrador. O ato erótico e a morte produzem algo mágico e tenebroso. Como em outros contos desse livro de André, o personagem busca o espaço da libertação. Basta sabermos se haverá uma transformação ou não no narrador-personagem através do desenlace do enredo. O coelho com seu “olho vermelho” aparece novamente na história, sendo uma figura importante na interpretação do conto.
O último conto a ser analisado é o texto que fecha a obra de André Alvez, “Entremeio com o poeta do trem”, em que o olhar é de novo ressignificado pelo ato da escrita, pela potência da poeticidade nele inerente, pois numa viagem de trem, um rapaz desvia sua atenção de uma bela mulher no vagão para um poeta anônimo sentado com seu caderno e caneta. E o poeta mostra seus escritos no trem para o rapaz, que se tornará aprendiz da literatura, fato que já lhe era inerente, pois o poético já residia em seu caminhar próprio e ímpar, diante da grande turba. Entre o amor de uma mulher e a inspiração da poesia, encontramos um embate que será resolvido no final do conto. O poeta diz: “Atingido pela poesia, meus olhos brilham”. O poeta é capaz de captar um olhar inaugural sobre as coisas, os seres e a natureza, jorrando sua luz original na realidade que o circunda. Algo mágico e desconhecido se dá na relação entre o mestre e seu discípulo, numa simbiose perfeita. Segundo o poeta do trem, a poesia levanta o voo e tem asas, numa metáfora alusiva ao poder imagético da criação, capaz de transfigurar o real. O rapaz fica assombrado com os versos do poeta que produzem encantamento e alumbramento, um descortinar do mistério do véu da vida a partir de belas imagens e metáforas, sendo a natureza um componente essencial dessa oferta simbólica da poesia. O poeta do trem diz ao rapaz: “-Tenho folhas e galhos, me procure numa árvore”. Nesse sentido, enquanto o conto-título narra sobre a morte, aqui temos uma celebração, uma festa em torno da vida pulsante e que é um presente para todos os seres.
Nessa doação do poeta para o mundo e para o jovem aprendiz, este O venera como um Deus, comparando a figura dele com algo inexplicável e divino. E, nesse entremeio do poeta e seu pupilo novo, o rapaz cita alguns veros que ele acredita que o mestre gostou: “o sorriso era de aprovação”. E, assim, se fecha um círculo perfeito. O olhar se mescla a outros sentidos, com a sinestesia e a percepção através do cheiro, do olfato, num misto de beleza e transmutação. Aquele homem enigmático, segundo o narrador, falava com todos os componentes da natureza, em todos os seus ciclos e estágios, sendo algo que escapa à compreensão humana. O poeta completa os versos do aprendiz e os dois sorriem. E a moça bonita fica cada vez mais longínqua, enquanto o caderno o abrasava fortemente numa chama de invenção. E os sorrisos entre o poeta e o aprendiz são formas de olhar, uma linguagem do corpo que traduz o dom dos despertos pela escrita. Uma cumplicidade jamais imaginada e que leva ao mais desconhecido do âmago interior. E, para sua própria surpresa, o rapaz conclui: “Talvez não fosse deus, mas um desses anjos andarilhos que se alimentam da poesia”. No desfecho do conto, as últimas frases do poeta ao se despedir são impactantes e reflexivas. Além disso, há imagens de intensa poesia do narrador nas últimas frases do texto narrado.
Portanto, a estreia de André Alvez nesse livro de contos é admirável, por sua potência literária que conjuga vários elementos do discurso narrativo. Os olhares se mesclam, se se separam e se cruzam em contos enriquecidos pela força do literário e pela reelaboração do realismo mágico. O escritor por ora aqui estudado tem o mérito de traduzir o olhar como itinerário interpretativo, língua corporal e sensória, com toques de existencialismo e realismo cruento e de intensa carga visceral. Portanto, os olhares se apresentam como janelas do texto, seja ele escrito, oral ou corporal, perfazendo um voo de plena fertilidade e imaginação. Que seu livro ganhe cada vez mais espaço no olhar dos leitores e faça os críticos enxergarem várias vias de significados plenos e multifacetados na sua escrita original.
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